Ao fim de uma chuva de apelos de altos quadros do Partido Democrata, de desanimadoras sondagens às bases do Partido e da debandada de alguns doadores, Joe Biden decidiu-se finalmente pela retirada “a bem da Nação”. Foi um gesto nobre, altruísta, lúcido e oportuno, tendo em conta que a esquerda do partido, ansiosa por entronizar Kamala Harris, se preparava para intimá-lo a sair à força e já sem contrapartidas.

Agora sim, podia enaltecer-se o elevado sentido de Estado que levara o Presidente a sair da corrida para “salvar a Democracia”. Agora sim, podiam a América, o mundo e o Partido Democrata demonstrar sentida gratidão pela vida de serviço à pátria de um excelente Presidente que tivera o infortúnio de ser acometido por “um mau dia” logo a 27 de Junho, no preciso momento em que enfrentava o Mau da Fita: o satânico, o diabólico, o demoníaco, o maligno Donald Trump.

Do auto vicentino ao filme B

É longa a crónica da representação do Diabo, deste Mal que agora tem em Donald Trump um dos seus mais famosos possessos designados.

Gil Vicente, que se ocupou da Terra e do Céu, ou melhor, da partida do Aquém para o Além, traçou os contornos de um Mafarrico que no Auto da Alma era metafórico e sisudo, mas que no Auto da Barca do Inferno, (1517), no Auto da Barca do Purgatório (1518) e no Auto da Barca da Glória (1519) assumia contornos mais histriónicos. O diabo vicentino das Barcas é um profundo conhecedor dos homens, alguém que os julga, acusa e a quem dá destino; sabe ou parece saber de tudo sobre os seus possíveis clientes, os mortos que vão chegando ao Cais das Almas. E é “populista” nos juízos: trata mal as elites – os condes e duques ou o onzeneiro, o agiota – mas vai safando os populares, como o lavrador. Compreende-se que Donald Trump o encarne, até pelo modo desbocado e chistoso de discursar (ele que, por uma vez, foi maçador no discurso de hora e meia na Convenção, talvez devido à “bullet for Democracy” que tinha acabado de levar – bala essa que já começou a ser hipoteticamente relegada para a “irrelevante” categoria de mero estilhaço).

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Mas a presente representação do diabo que supostamente possui Donald Trump não é de auto vicentino: é mesmo de filme B. Em 12 de Outubro de 2020, três semanas antes da eleição que Biden ganhou, estreou-se com ampla distribuição um filme em que um Diabo, de nome Luther, convence Donald a apresentar-se à presidência dos Estados Unidos. A comédia, algo brejeira, é de Param Gill e chama-se The Bad President. O Diabo Luther (Eddie Griffin) encoraja Trump (Jeff Rector) a tornar-se Presidente para poder ter um fantoche ao seu serviço, ao serviço do Mal. Trump recusa quando sabe que tem de dar a alma em troca, mas o Diabo chantageia-o e ele acaba por entrar na corrida. O filme vale unicamente pelo que nos diz da banalizada demonização de Donald Trump.

Já em 2017 Dylan Skolnick e Adam Birnbaum tinham reposto oportunamente 1984, um filme de Michael Radford a partir do romance distópico de George Orwell, como parte da propaganda anti-Trump. Na campanha mediática sugeria-se que Trump era o Big Brother. Do Presidente e dos seus instintos maléficos esperavam-se coisas horríveis – mas parece que Donald John não teve nem poder nem vontade para as levar por diante, e além de alguma rapidez e frenesim a despedir e a admitir colaboradores, ao estilo de The Aprentice, aguentou a Covid, conseguiu os Acordos de Abraão entre árabes e israelitas e não protagonizou ou promoveu guerras ou invasões.

Fé e populismo à esquerda

É curioso (e ocasião de alguma esperança) que a Esquerda mais radical – e com ela o Centrão, a direita da Esquerda e a esquerda da Direita –, feita de filhos dilectos da Razão e das Luzes, entre pelo caminho da demonização de Trump. Quem sabe não passe por aí uma jornada de conversão das Luzes à Luz? Quem sabe, por esta crença no Maligno de Mar-a-Lago, não acabem alguns por crer no Senhor de todas as coisas (porque quem crê no Demónio acaba também por crer em Deus)? Quem sabe não estará a um passo da fé no são convívio do lobo e do cordeiro no apocalíptico paraíso último quem tem fé suficiente para desfraldar lado a lado a bandeira LGBT e a da Palestina?

O que é certo é que já lhes apareceu “Nossa Senhora” – sob a forma jovem (quando comparada com “Deus-Biden”) da Senhora Kamala Harris. Dizem que “como mulher negra e jovem vai atrair muito eleitorado jovem, feminino e afro-americano”. Ora semelhante assumpção (achar que os jovens, as mulheres e os afroamericanos votam por idade, género e cor, sem considerar a índole, as ideias e a política da candidata), para não ser considerada de um inqualificável neo-paternalismo, só pode ser também uma questão de fé.

Até aqui há um mês éramos uns poucos a chamar a atenção para a clara degenerescência de Joe Biden, com o grosso da opinião bem-pensante, da América ao nosso doce rectângulo oeste europeu, a afiançar o bom estado do Presidente. Agora todos ou quase todos parecem ter descoberto que afinal Joe já não está apto a enfrentar o Diabo (ou sequer um gaguejado último discurso de 12 minutos,exaustivamente ensaiado e telepontado a partir da Casa Branca). De resto, quanto ao Presidente, a única coisa que parece não ter expirado é o certificado para concluir com êxito o mandato, mediante prévio sacrifício pela “democracia americana em perigo” (desistindo da corrida e indicando para o substituir a primeira mulher afro-americana a ascender, pela sua mão, à vice-presidência – e agora a uma candidatura presidencial).

É então Kamala Harris que, sem perguntas nem estados de alma, devidamente lavada de cargos, encargos, antagonismos internos, radicalismos e incompetências danosas por uma massiva máquina de propaganda, vai montar o cavalo branco e defender o Bem, em nome de “we, the people”. Como que incentivada dólar a dólar por pequenos e médios contribuintes e já abençoada por Barak Obama, Kamala prepara-se para se impor pouco democraticamente como a única democrata na sala. Tudo a fim de impedir que um Trump cavaleiro negro, solitário agente do Mal, desprovido de razão e de razões, sintoma de coisa nenhuma, financiado exclusivamente por “tubarões” e acolitado pela horda de deploráveis que manipula para agir só por malvadez contra um sistema impoluto, vença nas urnas e “acabe com a Democracia”.

Entretanto JD Vance trouxe para a campanha republicana um pensamento político articulado e a renovação geracional de que as sondagens já davam conta. Ele que tinha sido um crítico radical de Trump viria a assumir uma atitude bem diferente depois do seu tempo de presidência. Até porque via a alternativa representada pelo inefável Joe Biden, um centrista que fora fazendo todas as cedências e fretes à Esquerda, o homem da vergonhosa retirada do Afeganistão; o Presidente que, empurrado pela força das coisas, acaba de dar lugar à entronização da sua Vice, que já está a fazer o número da moderação e a contar com a demonização de Donald Trump para ganhar em Novembro.