O que é que se terá passado de tão espantoso há cerca de dois mil e vinte anos no Médio Oriente ali para os lados da Palestina, que nos continua a emocionar, que persistimos celebrar e chamar Natal? O nascimento de Jesus Cristo, que não foi apenas o princípio duma religião universal, mas, estou em crer, a inspiração para os maiores prodígios civilizacionais que se sucederam a seguir no Ocidente.

Hoje queria falar do Natal especialmente aos não crentes, àqueles que mesmo assim o celebram sob os mais variados rituais e pretextos. Aflige-me que, numa Europa cada vez mais laicizada, se vá perdendo a memória da razão inicial: o nascimento daquele menino que há mais de dois milénios interpela milhões de pessoas a n’Ele se reverem, amadas, livres e inteiras. A fortuna da privação, esplendor do humilde, a força do frágil, o poder da delicadeza, a gradeza do que se faz pequenino. Talvez porque nele somos convidados a participar na sacralidade daquela vida prometida, encorajados a usar a cabeça erguida, como bem-amados que afinal todos somos. Como Deus encarnado numa frágil Criança, que atraiu e fez pasmar reis e pastores que se dispuseram a seguir a estrela à sua descoberta. Um verdadeiro prodígio que há dois mil anos continua a atrair a humanidade, mesmo que não o saiba. É na descoberta dessa singularidade que se vai edificar o Homem Novo, pelo livre-arbítrio potenciador duma dignidade imperiosa, até no assumir da sua fragilidade. É sob esse pilar que se edificou a civilização ocidental.

“Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz” disse Jesus já no final da sua caminhada terrena. As tréguas são o grande e democrático milagre que concede o Natal a todos os homens e mulheres de boa vontade, sejam crentes ou não crentes, como que um antídoto ao cinismo. Mas essa mensagem já estava no Presépio, no princípio duma nova era para a humanidade – que até fez mudar o calendário. Recado daquela primeira Sagrada Família que, longe da sua terra, na falta duma hospedaria, se fez ela própria, casa, acolhimento e conforto.

Esta é uma mensagem irresistível a quem, apesar da vida dura e das cicatrizes acumuladas no coração, nele mantém uma pequena réstia brilho – é para esses que escrevo. É uma mensagem revolucionária aquela que nos traz o Menino Jesus: a do escravo finalmente liberto das prisões interiores e exteriores, senhor das suas escolhas e responsável pelas suas acções. É esta mensagem que está na base da civilização que recebi de legado – feita de pessoas capazes de se curarem e reconstruirem de dentro para fora.

O Natal é o prenúncio do Novo Mandamento: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo». É pela adesão a esta revolução que o Natal interpela tanta gente – que mesmo sem saber, nesta quadra está a comemorar o Presépio de Belém. Quantos mais se conseguirem dar desprendidamente, mais todos recebem – é o desafiante paradoxo.  Ainda vai a tempo de montar um em sua casa. Afinal, o Presépio é o mais valioso património cultural do Ocidente.

Um Natal Feliz para os leitores do Observador.

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