Como é do conhecimento generalizado, a pandemia, que nos afeta mundialmente, veio, quiçá definitivamente, alterar o nosso modo de vida.

O sector do retalho, especialmente o desenvolvido em espaços comerciais organizados – vulgo Centros Comerciais (CC) – não foi exceção, sendo mesmo um dos mercados que mais sofreu com as consequências da pandemia. Esta realidade justificaria, pensávamos nós, que os dois agentes mais relevantes desse mercado (proprietários de CC e lojistas) se alinhassem para que, em conjunto, defendessem um modelo de negócio que é o seu. Contudo, a realidade dos factos mostrou-nos que não foi assim.

A história, para quem não a acompanhou, conta-se rapidamente: O Estado português entendeu, como forma de combate à pandemia e proteção dos seus cidadãos, decretar o estado de emergência, decidindo o confinamento de toda a população e, consequentemente, o encerramento do comércio. Consequência desse facto, os lojistas foram, na sua esmagadora maioria, obrigados a encerrar (com exceção de algumas atividades essenciais).

A Assembleia da República veio legislar sobre a matéria, intervindo numa relação contratual, que era entre privados. E fê-lo com a aprovação da Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril (“Lei 4-C”), uma lei que trata de forma igual arrendamento urbano, arrendamento não urbano e os contratos de utilização de espaços comerciais!

Basicamente, a lei determinava que as rendas seriam integralmente devidas, mesmo durante o período de encerramento, e que as mesmas poderiam ser pagas em 12 prestações, após uma moratória de três meses.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Aqui chegados, os lojistas, sob as mais variadas formas, fizeram ver que não só continuavam a pagar encargos comuns (sim, nestes contratos com CC, o proprietário, para além da renda, cobra as despesas que tem com o funcionamento do imóvel – eletricidade, sistemas de ventilação e ar condicionado, segurança, etc.), como seriam ainda obrigados a pagar o rendimento a 100% ao proprietário, enquanto o rendimento deles, lojistas, era, conforme já mencionado, reduzido a zero.

Sensível a esta realidade vieram os deputados desta Assembleia, sem um único voto contra, note-se, (o PS absteve-se, todos os demais quadrantes partidários aprovaram) legislar, em sede de Orçamente rectificativo, no sentido de estabelecer que nos contratos de lojistas com CC não poderia mais ser cobrada uma renda mínima fixa, somente a componente variável.

Ora esta lei causou (com espanto, confesso) uma reação hiperbólica dos proprietários dos CC, os quais, essencialmente, argumentavam a sua posição com base nos seguintes argumentos:

  • Ingerência inaceitável do Estado numa relação privada;
  • Redução drástica do investimento internacional em Portugal;
  • Criação de desemprego;
  • Distorção de mercado.

Ora, é ao ver este conjunto de argumentos, que me ocorreu o título do presente artigo, tal é, salvo melhor opinião que não descortinamos, desadequada a argumentação dos CC. Vejamos:

É falso que a aprovação desta norma seja, em si, uma ingerência inaceitável nas regras de mercado e no respeito da propriedade privada pois, se assim fosse, então nunca teria ocorrido a Lei 4-C, que veio consagrar a moratória, alterando os termos contratados pelas partes.

Mais, ao restringir o direito legal, conferido nos termos do artigo 437.º do Código Civil, de invocar a situação de pandemia como motivo para resolver ou alterar o contrato, o Estado, de facto, pretendeu regular o mercado. Com o intuito de evitar uma litigiosidade em massa. Ou seja, interveio. Ao corrigir a Lei 4-C, no sentido que o fez, a Assembleia da República reconheceu que a solução que havia legislado era insuficiente e ela própria geradora de um desequilíbrio, que ofendia os princípios de equidade e boa fé que devem pautar todas as relações contratuais. E isto verifica-se quando se estabelecem medidas extraordinárias de proteção dos clientes bancários, ou quando se decide expropriar empresas aos acionistas privados, ou quando se regula o arrendamento impedindo despejos. Com a alteração aprovada no Orçamento retificativo o legislador limitou-se a melhorar uma intervenção, que já havia efectuado, a qual, que se saiba, nessa fase, não causava nenhuma indignação aos representantes dos proprietários de CC.

Mas também não se argumente que esta intervenção é, inclusive, inconstitucional, pois a nossa Constituição não consagra um primado absoluto do direito da propriedade, nem consagrou, para o nosso país, um liberalismo à imagem da escola de Chicago!

Aliás, os Portugueses, sempre que chamados a votar, sob a égide desta Constituição, foram unânimes em escolher soluções governativas que defendem um mercado aberto, mas regulamentado, a proteção do direito privado, mas não o seu primado. Um Estado regulador que deve intervir, sempre quando se revele necessário equilibrar as relações de mercado e evitar situações de profundo desequilíbrio do mesmo.

Já o tema da redução do investimento internacional é um argumento que evidencia a arrogância com que determinadas entidades veem um país como Portugal. Ora, estamos absolutamente de acordo, que Portugal necessita tremendamente de investimento estrangeiro, mas perante este tipo de argumento, importa ponderar, a que preço? Ao preço da destruição de milhares de lojistas e centenas de milhar de posto de trabalho em Portugal? Pois não se iludam, todos os funcionários que veem num CC são funcionários dos lojistas e não do CC.

Será que é pedir muito, que estas Instituições, que ao longo dos anos têm beneficiado, em Portugal, de um conjunto de incentivos fiscais, perante a maior crise sanitária de que há registo na nossa era, suportem uma perda de rendimento? Mas o que pretendem do país? Que, nas actuais circunstâncias, coloque o rendimento dos investidores à frente de todas as restantes necessidades do país e da economia?

Assim sendo, a que preço queremos atrair o investimento estrangeiro? Por acaso o Estado português agiu ao arrepio da lei e das normas constitucionais? Num mundo que se quer cada vez mais aberto e global, faz sentido este trade off entre investimento e os pilares regulamentadores do nosso modelo como sociedade? E qual seria a alternativa? Percebendo que não há CC sem lojistas, e sendo uma evidência sindicável que o anterior regime (Lei 4-C) criaria uma catadupa de encerramentos e falências, por acaso estão os proprietários a pedir que o Estado, com os impostos de todos, financie os prejuízos dos lojistas, para que assim estes não encerrem as suas lojas e possam continuar a operar nos CC como se não existisse pandemia?

Certamente que esta ingerência do Estado na economia, sobrecarregando os contribuintes com mais impostos, já não seria considerada uma ingerência inaceitável.

Finalmente, vejamos a distorção de mercado. A que distorção se referem? A de ter os lojistas a pagar rendas a 100%, quando não tinham acesso à sua loja? Como podem querer exigir rendas mínimas garantidas, quando os pressupostos, que estiveram na base da fixação desse valor mínimo, foi completamente destruído? O tráfego médio de pessoas nos CC foi drasticamente reduzido, existem restrições à utilização dos parques de estacionamento, existem barreiras à circulação, em síntese, verifica-se a destruição do carácter lúdico, que o consumo nos CC representava e que estava na base da decisão dos lojistas aceitarem rendas mínimas garantidas.

Note-se, estes contratos têm, na sua esmagadora maioria (e é para uma maioria geral e abstrata que se legisla), três componentes: renda mínima, renda variável e encargos comuns. Eliminou-se uma das três componentes, precisamente aquela que, pela sua natureza, não tem flexibilidade para se ajustar à nova realidade, e a conclusão dos proprietários dos CC é que se está a provocar uma distorção de mercado!

Por isso me questionava se, porventura, necessitarão realmente os CC de lojistas.

Existirão centros comerciais sem lojistas? E já agora: existirão lojistas sem centros comerciais?