Onde é que eu estava no 25 de Abril de 2024? Em casa, a reflectir nas descargas retóricas do prof. Marcelo produzidas no dia 23. Parece que milhares de portugueses saíram à rua a comemorar um regime que nos permitiu escolher em liberdade um presidente assim, tão distante de um presidente assado e imposto do calibre, por exemplo, de Américo Thomaz. Aqui, numa vila encostada ao cantinho superior direito da pátria, não dei pela existência de festividades, pelo que cirandar na rua sozinho a berrar slogans e exibir cravos seria um programa suspeito. A alternativa passou por uma tarde recatada, a ver filmes do Billy Wilder, a consultar as “redes sociais” e a inventariar as teorias com que o bom povo procura explicar o estado do prof. Marcelo.
As teorias são abundantes em número e empenho. O homem está maluco. O homem é maluco. O homem bebeu. O homem fumou. O homem não tomou a medicação. O homem é uma criança desesperada por atenção. O homem é um egocêntrico patológico. O homem padece de Covid longa. O homem está afectado pela vacina. E estas são apenas as teses que captei na minha “caixa” de comentários no Twitter: de certeza que em “caixas” alheias se garante que o homem serve interesses extraterrestres ou é refém dos “illuminati”.
Entre parêntesis, e para efeitos legais, informo que me limitei a reproduzir o que algumas pessoas opinaram, sem respeito ou consideração pelo posto de mais alto magistrado da nação (no que, curiosamente, imitam o mais alto magistrado da nação). Fechado o parêntesis, achei interessante que a vasta maioria das “justificações” invocasse situações de excepção. Poucos estudiosos colocaram a hipótese de o prof. Marcelo ser, desde sempre, um mero caso de mediocridade, a que o “marketing” e a propensão nacional para venerar pechisbeques conferiram uma dimensão de suma inteligência. Como o cavalo com riscas que costuma ser uma zebra, o provável é que o prof. Marcelo diga disparates porque pensa disparates. O mito em volta do “brilhantismo” da personagem decorre de uma vácua carreira no, digamos, jornalismo, onde se especializou em coscuvilhice e boatos, e sobretudo nos anos de parlapatice televisiva, que aproveitou para teimar na manipulação primária, fingir que lia livros e ganhar notoriedade. A notoriedade é o único desígnio do prof. Marcelo.
Sendo esquisito, um cronista que não sabe o que é uma crónica e um comentador político a quem não se conhece uma ideia política não configura um quadro especialmente condenável ou grave: qualquer artista de variedades executa as piruetas – ou os banhos no Tejo, ou as “selfies” – necessárias à fama. O problema é o artista de variedades ambicionar a presidência. E, muito pior, chegar à presidência. Empurrado pela tal notoriedade, por faltas de comparência e de concorrência, por “media” simpáticos e pelos pares de uma “elite” que se exalta mutuamente para não se revelar pelintra, o prof. Marcelo chegou. E disse.
Nestes oito anos, o prof. Marcelo disse imensas coisas, nenhuma que tivesse pertinência ou sentido, e calou outras tantas, todas as que arriscavam relevância e implicavam compromisso. De caminho, sustentou com empenho as peripécias de governos daninhos, manteve o país por 173 dias numa “emergência” cobarde e arrasadora, deixou-se fotografar com 98% da população, beijocou 99%, convocou repetidamente câmaras para o filmarem a despir-se na praia, proclamou-nos os “melhores do mundo” em centenas de sectores e actividades, deu entrevistas no lugar dos jogadores da bola, usou ou permitiu que se usasse o seu cargo em favores particulares, etc. Não foi bem o “prestígio” do cargo que o prof. Marcelo implodiu: foi mesmo a autoridade do cargo, que com dificuldade voltará a ser o que era. Se é que volta.
Bastaram três ou quatro meses para, em entrevista de Junho de 2016 a Rui Ramos e Vítor Matos, para o Observador, Vasco Pulido Valente avaliar os méritos dos mandatos do prof. Marcelo: “Acaba com a seriedade na política. Ele transformou a política num espectáculo. Não há dia em que ele não apareça. (…) Marcelo não tem relações com o país. Ele tem a mesma espécie de relação que um cantor pop tem com o seu público. Dar beijinhos à população não é ter uma relação com o país. Que mensagem é que ele passa? Que convicção é que representa um beijinho?” E o Vasco acrescentou: “Lembra-me sempre uma frase que o De Gaulle disse sobre o Lebrun, último presidente da Terceira República Francesa. ‘Como chefe de Estado ele tinha dois defeitos, não era chefe, nem havia Estado’”.
Eis um resumo cabal. Oito anos depois, o prof. Marcelo só aprimorou o “estilo” e aprofundou as respectivas consequências. Pode-se discutir se as alucinadas confissões aos correspondentes estrangeiros, na última terça-feira, representam um passo em frente num percurso de impensáveis embaraços ou se mantêm o tom de sempre. Indiscutível é que o prof. Marcelo não possui as características intelectuais, emocionais, sociais e o que quiserem para ser presidente da República. Mas é. E, apesar dos crescentes apelos para que renuncie formalmente ou desapareça informalmente, em princípio continuará a sê-lo até 2026. O que daqui a dois anos será a República é uma questão diferente.