Esta semana, visitei o jardim duns amigos, que só conhecia de ouvir falar. Não era como imaginei. Não podia ser, porque um jardim imaginado nunca é igual ao jardim verdadeiro. Eu pensava que andariam por ali borboletas, mas aprendi sobre vespas. Pensava que, sob o diospireiro, havia uma mesa, mas encontrei dióspiros caídos de maduros. Tinha imaginado cravos, onde estava um manto de trevo. Rosas no lugar da romãzeira. Também tinha imaginado os meus amigos diferentes do que eram, havia chegado a pensar que não existiam, porque os conhecia, há anos, apenas por correspondência ou telefone. Pensava-os, ao mesmo tempo, mais magros e mais gordos. Não tão sardentos nem tão pouco ruivos, não tão alegres nem tão cabisbaixos. Não tão faladores nem tão calados.
Contaram-me como ia a vida do jardim e, enquanto falavam, eu ia pensando no jardim da minha vida. Quase parece democrático, que qualquer um possa ter um jardim, mesmo que não tenha nenhum.
Ensinaram-me a fazer armadilhas para apanhar insectos, pondo melaço e aguardente numa garrafa de plástico e, em vez de os ouvir, pensei que também precisava de fazer armadilhas à minha volta. Apontaram a jarros invasores, buracos nos quais viviam roedores suspeitos, as chuvadas, um enxame de vespas asiáticas num ramo de bagas, que obrigou a intervenção da Protecção Civil. E eu, surda, ouvi fulano, beltrano, a minha casa, os meus problemas.
Podia agora ver, pela primeira vez, como eram amigos e jardim. Mas perdi-me em correspondências, alegorias e analogias.
Alguma vez se está diante de alguma coisa?, pergunto-me agora. Vemos verdadeiramente, alguma vez, o que temos à nossa frente? Talvez exista um modo de não nos projectarmos em tudo o que observamos e ouvimos, e haja um caminho até esse modo, que nos impeça de encontrar em tudo semelhança connosco. Ainda não sei como se faz.
Jardineira, vou dando conta de que o jardim imaginado é que cuida de mim e, a certo ponto, me escraviza. Lembro-me das palavras de Rousseau, nos Devaneios do Caminhante Solitário, quando declarou que a botânica era uma “doença”. Talvez o tenha dito porque sentisse, passeando pelos campos, que era a si mesmo que via a todo o momento, reflectido na paisagem, nos sons, nos céus, nos vultos. De que vale fugir para a Natureza, se ela for um espelho, no qual contemplamos o nosso reflexo, quer dizer, um espelho diante do qual somos cegos? É um problema antigo na Pintura, e os donos do jardim que visitei são pintores. Será que também eles, nos seus desenhos, padecem de ver o seu jardim diferente daquilo que é?
Parece que os únicos jardineiros possíveis de um jardim imaginário são o tempo e a vida, e que a nós cabe deixá-los entrar e resolver a confusão. Não me refiro a um jardim que coincida connosco, que haja que aperfeiçoar e cuidar. Mas, pelo contrário, aquele que não coincide com o que somos, composto por aquilo que, estando à nossa volta, não diz apenas respeito à nossa pessoa, mas também ao que é diferente de nós.
A cegueira de nos vermos reflectidos em tudo e em todos parece e não parece uma fatalidade e estranhamente convive com a forma como aquilo que nos é estranho tantas vezes nos repele. Se calhar, é quando estranhamos os outros que a cegueira mais se manifesta — e, então, fugir do mundo é fugir de nós.
Depois da tempestade, muito antes da bonança, há que dar a volta ao jardim. Pode até não ter chovido e é preciso paciência infinita. Dou comigo a mondar tardes a fio, tinha-me esquecido de algumas pessoas, doutras esforço-me por esquecer, tenho de desfazer compromissos, limpar os canteiros, desimpedir os caminhos, podar, aproveitar o que não se partiu, deitar fora o que não tem conserto, substituir os vasos, reconstruir o muro, plantar, regar o que sobrou. Não é jardinagem de olhos abertos, vou tacteando, de olhos vendados. O jardim resultante do meu trabalho é também diferente daquele que fui imaginando enquanto o arranjava. Quando o que queria, aquilo que procurava, talvez fosse um jardim cego e surdo como eu, indiferente, que não me visse nem ouvisse, nem fosse senão aquilo que é.