‘Pôr-se a jeito’ é um conceito complexo que talvez explique uma certa portugalidade. A honra e a vergonha eram, para os antropólogos, valores considerados centrais nas sociedades tradicionais mediterrânicas. Ora, o ‘pôr-se a jeito’ está no centro de uma cultura dos valores, da vergonha e da falta dela.

Por um lado, parece que o ‘pôr-se a jeito’ significa expor-se para além do que seria necessário ou deveria. Ou seja, algo que se faz e que se estava mesmo a ver que poderia vir a ser alvo de crítica (‘puseste-te a jeito’, agora não te queixes!). E, portanto, o ‘pôr-se a jeito’ é uma espécie de superego português que nos vai censurando: “- não vás tão decotada”; “-não fales tão alto”; “-não critiques” … Nesse registo moral, o ‘pôr-se a jeito’ destaca-se numa ressonância sexual de género específica na nossa portugalidade conservadora. Ou seja, se levas mini-saia ou se vais muito decotada ‘pões-te a jeito’. Mas se olhas demais ou se estás muito tempo na conversa porventura também te podes estar a ‘pôr a jeito’. Quer dizer, do ponto de vista de um certo marialvismo, qualquer dessas ou outras atitudes podem ser uma provocação em demasia e dar azo ao pensamento de ‘estás mesmo a pedi-las’. O ‘pôr-se a jeito’ seria algo que até faríamos normalmente, sem querer, ou espontaneamente, mas que pode ter más consequências pelo que convém pensar duas vezes. Do género ‘deixaste a janela aberta, não admira que tivéssemos sido assaltados’. A mãe, mais do que o pai, assume, por vezes essa figura zeladora ao dizer aos filhos, quando começam a sair de casa ou vão a situações sociais relevantes: ‘- vê lá, não passes vergonhas!’, como quem diz também ‘-Não nos envergonhes’. Assim, o ‘pôr-se a jeito’ é toda uma filosofia para uma auto-censura portuguesa, para um auto-controlo dos nossos comportamentos e atitudes. Em última análise, para não sermos de todo espontâneos, para parecermos mais do que sermos! Mas isto percebe-se melhor quando há uma colonialidade moral, ou seja, quando o regime moral de uns implica cautela não vá ser treslido pelo regime moral de outros. E tal também significa que enquanto uns podem ser envergonhados (entenda-se também reputacionalmente feridos), outros não, quer porque dominam os instrumentos da vergonha, quer porque há muito tempo já deixaram de ter vergonha. Esta duplicidade do ‘pôr-se a jeito’ é um mapa social que divide o povo dos donos da terra, o interior do litoral, o rural do urbano e o país de Lisboa: um mapa do clientelismo e patrocinato. É que apesar das políticas de coesão territorial há territórios em que compensa muito mais ‘pôr-se a jeito’ do que outros! Ou seja, a vergonha e a sem-vergonhice não estão equitativamente distribuídos! Mas descentralizar é colocar a sem-vergonhice em todo o lado…e ninguém quer isso!

Assim, num outro regime moral o ‘pôr-se a jeito’ é até uma forma de vida. Viver para aparecer no duplo sentido de estar presente e ‘fazer figura’ tornou-se elemento central desse modo de vida e…para isso, convém estar em Lisboa! Não é que não se ponham a jeito noutros locais do país (obviamente que sim) mas não é a mesma coisa! Assim, a sem-vergonhice do ‘pôr-se a jeito’, por um lado numa inversão do seu sentido de auto-censura, mas por outro lado na continuação do seu sentido de colocar-se ‘debaixo da asa’ de alguém, passou a ser um piscar de olho ao poder, um flirt a quem pode dar uma mão ou ajudar num empurrão. Quem não tem cão caça com gato e quem não tem nome de família, nem cartão de partido num país pequeno, fechado e velho, o melhor é mesmo ‘pôr-se a jeito’! E mesmo os que têm isso tudo, tenho-os visto ‘pôr-se a jeito’ até porque terão já aprendido o quanto dá resultado ou, como também se diz, por vezes, ‘quem não chora não mama’.

Este segundo sentido do ‘pôr-se a jeito’, assumindo os bons serviços da sem-vergonhice, evidencia uma sociedade claramente hierárquica, dominada pelo patrocinato e clientelismo e em que ao modelo administrativista de assédio moral vertical descendente, corresponde de forma perfeita, o ‘pôr-se a jeito’ como modelo de sedução vertical ascendente. Portanto, se a distância de poder, uma certa colonialidade, faz controlar a espontaneidade pelo recear ‘pôr-se a jeito’ à potencial critica e mesmo exploração por esse poder, já o ‘pôr-se a jeito’ planeado é o tirar partido da proximidade do poder, num jogo de estratagemas em que o indivíduo aceita uma sociedade de clientelismo e patrocinado e molda os seus valores segundo as circunstâncias para um ganho máximo presente ou futuro. O ‘pôr-se a jeito’ é assim um traço base da corrupção do caracter do português que mina tanto as instituições como o modelo administrativista do assédio.

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O ‘pôr-se a jeito’ é uma cultura que implica um conjunto de atitudes e comportamentos que circulam, curiosamente, entre o aparecer e a aparência, a norma do auto-elogio, o elogio em boca alheia, a bajulação clara, e uma corrupção passiva-ativa como investimento em futuros. E talvez haja ainda outros modos que o leitor se lembre à medida que vai lendo.

‘Pôr-se a jeito’ pode passar por simplesmente aparecer, parecer fazer parte de um grupo para conseguir mesmo fazer parte dele… ou de qualquer outro até melhor no processo. Primeiro consegue-se aparecer (por exemplo na televisão), depois parece que somos qualquer coisa (por exemplo apresentador/comentador de televisão) e acontece virmos mesmo a ser (mesmo que seja qualquer outra coisa). Há gente que tem no cartão doutorando…há dez anos; há gente que tem no cartão professor universitário ou diretor de alguma coisa… (por exemplo, Diretor de Marketing!) ou R.P., ainda que tais cargos sejam gratuitidades que servem, grandemente, para ‘pôr-se a jeito’ para qualquer outra coisa: é marketing!

Vamos supor, agora, um funcionário precário numa reunião de balanço do semestre. O auto-elogio no sentido de dizer que tudo correu às ‘mil maravilhas’ tem duas vantagens desde logo: por um lado denota uma motivação para o trabalho; por outro lado faz realçar objetivos cumpridos e boa recepção do seu trabalho. E, como não há duas sem três, o maior efeito desta performance é dizer que o departamento está a ser muito bem dirigido e tudo vai de ‘vento em popa’ que é um ‘pôr-se a jeito’ para 1) não ser substituído, 2) aceitar mais responsabilidades e 3) quem sabe, deixar de ser precário.

Uma outra técnica muito usada é o elogio em boca alheia. Coloquemo-nos agora num departamento de vendas mas podia ser numa universidade: alguém diz que um fulano júnior saiu e foi para outra empresa mas em conversa perguntou-lhe o que tinha achado do nosso departamento enquanto lá tinha estado. Pois a pessoa disse maravilhas, que gostou muito de estar no nosso departamento, que era um departamento que tinha uma clara estratégia e com grande futuro. ‘-E é isto sempre que dizem mesmo quando escolhem ir para outros lados!’. Pois!

Vejamos agora a bajulação. Ela já existia, mas foi enfatizada quando a tendência da psicologia positiva. Nada como dizer que ‘maravilha!’; ‘simplesmente fantástico!’; ‘grande ideia!’ e por aí fora. E propor louvores e aplausos também fica bem. O que interessa é que se escolha o alvo e processos certos: aos colegas os elogios sempre em privado para não causar invejas dos chefes; já aos chefes, claro, elogios públicos, mesmo que seja por ninharias!

Vejamos agora outro caso ainda. Quando alguém (numa reunião pública ou em televisão) se prontifica para elogiar um comportamento fortemente polémico (até indesculpável) de alguém com poder. De facto, esta pessoa está a assumir-se como corruptor passivo do poder da pessoa elogiada. A beleza de tudo isto é que a esta não lho pediu…nem precisa: o poder faz isso por ele/a. Mas o elogio feito não é gratuito pois evidencia o desejo de ser recompensado. Ou seja, a pessoa está a ‘pôr-se a jeito’ a ver se lhe cai alguma coisa no futuro: um ‘lugarzinho’. Isto é, o elogio em causa é uma forma também de corrupção activa: neste caso um investimento em futuros. E é neste país do ‘pôr-se a jeito’ que vivemos.