Se calhar o título soa-vos. Pensem numa mistura de Seis personagens à procura de um autor e À espera de Godot –– e desculpem a arrogância. No fundo é sobre um dos temas mais relevantes da cultura portuguesa: o paizinho! O sebastianismo de dupla face. O paizinho benévolo que nos faz favores e que é a contra face do paizinho carrasco que desejamos que surja e que ponha isto no sítio! A ver se “este país entra nos eixos!”. O polícia bom e o polícia mau tão usado como dupla em tantas e tantas organizações: um instala e o outro…entala! Um aprecia e o outro assedia. Saímos contentes de uma porta e no dia seguinte somos chamados a outra e percebemos (ou não – às vezes só uns meses ou anos depois) que afinal nos tramaram! E como o escrutinador é um enigma português, alguém que se procura em vão pois ninguém “se quer chatear” e todos “lavam daí as suas mãos”, tudo se vai fazendo e tudo vai apodrecendo, esperando que um dia…ah talvez um dia…quem sabe um dia!

Entretanto, as novas formas de luta fazem-se por células e ‘grupos inorgânicos’ (o que quer que isso seja – que pode ser muita coisa) e muito por WhatsApp. Deve haver em Portugal milhares de grupos de WhatsApp que são o melhor (ou pior) de dois mundos: possibilitam a descarga da bílis e, ao mesmo tempo, são a evidência da clandestinidade e…do medo. Temos milhares de exilados no WhatsApp! Talvez haja pelo menos dez vezes mais exilados no WhatsApp do que antes do 25 de Abril além-fronteiras. E, mesmo assim, é preciso ter cuidado pois o edifício institucional e jurídico do garantismo dos maus costumes é de tal maneira que as vítimas podem sê-lo duplamente, acusadas de difamação, falsos testemunhos, calúnias, atentado ao bom nome e sei lá que mais que é uma forma de dissuasão para mantermos um país de brandos costumes. Analisemos de forma breve um caso-modelo para uma peça em três atos. Chamemos-lhe QRR! – À procura de um escrutinador.

1º Acto

Entra um Arlequim em cena a fazer de galinha e a querer voar e a articular ‘QRR!’, ‘QRR!’, ‘QRR!’. (Instiga o público a fazer ‘QRR!’, ‘QRR!’, ‘QRR!’ com ele.)

Entra em cena uma mulher de meia-idade, alegre e desempoeirada e, por isso, tem um quê de adolescente, a falar para todos.

– Gentinha, temos de nos deixar de ser QRR! (queixosos, ressentidos e revoltados) e organizarmo-nos. Resolvi criar um grupo de WhatsApp para ver o que podemos fazer. Chamei-lhe “Radicais Livres” pois a lógica é evidenciar o cancro a que isto chegou. Só coloquei seis pessoas senão, já se sabe: isto é tudo política e, portanto, alguns, enquanto sorriem ao amigo estão a piscar o olho ao inimigo. Temos de ser uma célula pequena. Nunca se sabe quem está connosco e quem não está! Proponham medidas de luta.

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Feito o grupo, o encenador que se arranje e faça o que quiser, mas eu cá colocaria em palco seis buracos e cada um dos cinco que vão entrando em cena, juntamente com a primeira que entrou, atiram-se para o seu buraco onde permanecerão ao longo da peça, enterrados até à cintura em areia movediça a olhar para o telemóvel. Assim se definem os ‘dias felizes’ da clandestinidade.

B1 – Podemos reclamar ao Superior, ao Provedor, ao Inspector, ao Procurador…Se formos muitos talvez funcione. Eles vão perceber o horror!

B2 – Podemos ir para os jornais. Isto sem os jornais não vai lá. As coisas só mudam depois de se tornarem notícias. Temos de ter uma narrativa articulada!

B3 – Deviamos era ir para a televisão! Tem de se mostrar esta grande pessegada!

B4 – Podemos fazer um estudo que denuncie mas é toda esta situação.

B5 – ão…ão…ão…ão (um cão que ladra).

B6 – Gentinha, ótimas ideias!

2º Acto

Reentra o Arlequim repetindo-se a cena e instigando mais o público (QRR! QRR!, QRR!).

B1 – Escrevi ao Superior, ao Provedor, ao Inspetor, ao Procurador, à Autoridade, ao Ministério…

B2 – E eu para os jornais!

B3 – E eu contactei um amigo que conhece aquela jornalista de investigação!

B4 – E eu comecei a fazer da literatura científica a revisão!

B6 – E então, e então, e então!? Há sinais?

B5 – ão…ão…ão…ão (um cão que ladra)

B1 – Responderam-me! Já não é mau. Um disse que não era sua função; o outro que talvez, quem sabe uma comissão, outro disse para olharmos em frente e não ficarmos reféns da situação, outro mostrou a sua indignação e um outro ainda comiseração.

B2 – Que bom! Nos jornais já foi publicado!  Vamos ver o resultado!

B3 – Isto está na agenda. Não veem? A investigação está por todo o lado! Já só se fala dos juízes de instrução!

B4 – É agora que isto muda. A agenda está de feição.

B6 – Gentinha, vou estar um pouco ausente. Volto daqui a bocado.

B5 – ão…ão…ão…ão (um cão que ladra)

3º Acto

Reentra o arlequim e repete a cena do QRR, QRR, mas com ar de enfado. Depois dirige-se ao público:

– Estes miseráveis deram-me só estas deixas mas eu sou capaz de muito mais! (faz umas acrobacias típicas dos arlequins). Agora vamo-nos todos levantar e fazer uma posição de yoga. Vá a posição é esta (faz a posição de avião). Chamam-lhe “avião”. Aqui podemos chamar-lhe de escrutinador português: o equilíbrio num só pé e …uma patada no ar! É difícil um equilíbrio num só pé e mais ainda, não dar uma patada em alguém! Esse é o exercício. Vá vamos todos tentar ser escrutinadores à portuguesa! Não é fácil não darem com o pé em alguém num lugar pequeno como Portugal!…desculpem como este teatro quero eu dizer! Se derem não faz mal. É uma homenagem ao teatro da crueldade (ah! ah! ah!). Se alguém se queixar, depois arquiva-se não se preocupem.

– Deixo-vos. Vou trabalhar para quem pague melhor! E, entretanto, vou ao Got Talent Portugal.

Passam imagens de títulos de jornais e de legendas de televisão sobre assédio, corrupção, tráfico de influências…desordens e investigação, irritações, políticos, policias e manifestações…

B6 – E então, está a dar em alguma coisa? É agora? É agora? É agora?

B5 – ão…ão…ão…ão (um cão que ladra)

B4 – ahhhhh!….Talvez não!

B1 – Ninguém se chega à frente, ninguém se quer atravessar!

B2 – Ninguém quer a batata quente de escrutinador. E se se acagaçam acima…!

B3 – É isso! E por isso tão mal que cheira cá em baixo! E por pior que seja o fedor! Tudo irá continuar.

Passa o Arlequim a dizer adeus! A rir com dinheiro a sair do bolso e a dizer QRR, QRR, e a gargalhar, a apontar e a rir do público.

Entra uma ‘cantora careca’ (uma pista de que o cancro alastra) a cantar:

um foi para o Brasil,
outro para comentador
uma foi para a terra, outra partiu o quadril,
uma percebeu que… afinal, afinal
tinha vocação de ditador,
e o cão concorreu ao The Voice Portugal!

Fecha o pano!

Quando o público já se está a levantar, entra um tipo vestido de forma “casual chique”, com blaser, calças de ganga de marca e uns ténis de 300€.

– Olhem, podem ir-se embora. Eles foram embora e eu também vou! Não há nada que nos faça aqui ficar. De facto, só fiquei para dizer mal da peça. Eu antes era um ‘crítico’. Agora sou um “hater” e dá muito mais proveito. Antes tinha de pedir para ser publicado. Agora, pagam-me para dizer mal. É uma maravilha. Quanto a esta peça, isto não diz nada! Este autor para além de ser claro que está na crise da meia-idade e falar intelectualês, é da extrema esquerda ou da extrema direita, não sei! Ou então é um daqueles radicais do centro! E o que é isso de um escrutinador? Essa palavra nem existe em português. Alguém sabe o que é um escrutinador? Algum de vocês alguma vez viu um! Será um pássaro, um avião… não é uma poeira nos olhos! Ah deixa cá passar o escrutinador para limpar! Bolotas! Vão com Deus e pela sombra que o sol queima…