A estória de Pedro e Inês é uma das mais fascinantes da nossa História. De facto, não há português que não a conheça através das máximas ‘fazer-se de Inês’ e ‘Agora é tarde, Inês é morta’ e ‘Inês é morta’. Estas máximas são descrições sintéticas de complexos centrais da cultura portuguesa que nos tramam a todos: a sonsice na actuação, o postergar da decisão e o fatalismo como aceitação.

Quer a estória quer os ditos articulam a paixão e os interesses ou, se quiserem, de forma mais simples, o coração e a cabeça: dualidade central em que toda a cultura tem uma combinação específica. Inês, dama de companhia da mulher de Pedro – futuro rei (ou talvez não segundo os novos historiadores) – e Pedro aparentemente apaixonaram-se, mas o Rei (o Rei Afonso IV,, pai de Pedro) desconfiava que a paixão escondia interesses do Reino de Castela: em suma, que Inês era uma espia. Inês foi exilada, mas manteve a relação (por carta e em encontros furtivos) e quando Pedro enviuvou, ela regressa, vindo a ter quatro filhos de Pedro. Pedro sofria de forte gaguez e era dado a medos e ansiedades e, num contínuo paradoxo entre, por um lado, os interesses e a paixão e, por outro, o acreditar na paixão de Inês ou não, era incapaz de resolver a sua situação. Percebendo isso, o pai tomou o destino em mãos, mandando matar Inês no Paço de Santa Clara em Coimbra, onde vivia (ou na actual Quinta das Lágrimas como diz a lenda). Conta a estória que Pedro depois de ser Rei não só mandou matar os assassinos de Inês de forma cruel, como mandou desenterrar Inês para com ela casar e a coroar como rainha.

Inês é a personagem mais complexa desta estória. Estaria verdadeiramente apaixonada ou estava ‘a fazer-se’, ou seja, era só uma sonsa? E, neste caso, era só uma mulher que se encostou e vivia de favores de um futuro rei ou era antes uma espia ao serviço de Castela? Para Afonso IV (o pai de Pedro I), de uma forma ou de outra, ela era um perigo: aceitou o lugar de amante e teve filhos do futuro rei e, portanto, estava ‘a levar a água ao seu moinho’ (fosse a paixão verdadeira ou/e ao serviço de Castela), ‘passando por entre os pingos da chuva’ (ou seja, escapando do controlo do próprio Rei). Portanto, para Afonso IV ela era uma sonsa! Quanto a Pedro, o que fazia era ‘empurrar com a barriga’ o problema em que estava e que não era pequeno: entre os interesses da ‘Coroa’ ditados pelo Rei-e-pai e a paixão que tinha por Inês… e as dúvidas que teria. Ao ficar como ‘um tolo no meio da ponte’ entre escolhas, acabou por só decidir quando a tragédia estava consumada: ‘Agora é tarde, Inês é morta’.

E o que tudo isto tem a ver com a nossa vidinha neste país à beira mar plantado? Bom, desde logo, sociologicamente as personagens dessa história (Afonso IV, o seu filho D. Pedro e a sua amante Inês de Castro) retratam três características psico-sociais que se mesclam em muitos portugueses, em particular nas nossas chefias e suas extensões, e que acabam por resultar em patologias organizacionais profundas: o autoritarismo, a insegurança neurótica e a sonsice.

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No entanto, a sonsice é a característica mais complexa pela sua duplicidade e por impedir que em muitos portugueses as suas melhores qualidades se realizem, em função da aprendizagem da esperteza saloia como melhor estratégia na vida. E tal é responsável por parte (porventura significativa) da pouca produtividade do país. Por exemplo, devemos perguntar-nos o que é que os jovens aprendem mais depressa em Portugal: a paixão por alguma coisa a sério ou a sonsice do fazer de conta? Ou seja, o que é que a instituição escolar em particular alimenta mais: a paixão por uma área ou a sonsice? E no momento charneira de escolher um caminho para a vida, o que é que conta mais? Ou seja, os alunos que vão no 10º ano para prosseguimento de estudos sem de facto terem vontade de estudar nem vocação por uma área, o que vão aprender em 3 anos de ensino secundário e mais 3 (muitas vezes mais) de ensino superior senão a sonsice!

E, finalmente, depois, temos de nos perguntar o que é que as instituições em que trabalhamos em Portugal valorizam mais: os apaixonados pelo seu trabalho ou os sonsos lambe-botas? Os miúdos que não aprenderam a sonsice na escola e chegam ao trabalho com ideias porventura incutidas por algum professor apaixonado, arriscam ouvir: “Você aqui não sabe, não faz, não opina e não decide!”. E se não perceberem à primeira, vão perceber, ao menos na função pública, no primeiro encontro com o SIADAP, que o melhor caminho é o do rame-rame e da sonsice.

Consideramos alguém sonsa (o comportamento foi mais atribuído às mulheres mas é transgénero) sempre na terceira pessoa ‘Ela é uma sonsa!’, querendo dizer que ‘sabe fazê-las’, que sabe bem ‘ao que vai’, que sabe ‘levar a água ao seu moinho’ no que lhe interessa, ao mesmo tempo que sabe ‘passar entre os pingos da chuva’ no que não lhe interessa. Quer dizer, tem interesses muito claros ainda que se mostre desinteressada e sabe descartar-se muito bem do que não lhe interessa. Assim, a sonsice é dúplice. Se por um lado, a sonsice evidencia a dissimulação, a capacidade de fingir, a manha ou hipocrisia; por outro lado, pode ser também sinónimo de esperteza, astúcia ou mesmo sagacidade disfarçada.

Portugal é um país de gente apaixonada, por isso temos dos melhores do mundo, ao nível individual. Temos dos melhores futebolistas do mundo, dos melhores treinadores do mundo, dos melhores empresários de futebol do mundo que toda a gente conhece… (todos lá fora!). Mas também dos melhores do mundo em variadíssimas outras áreas (gestão, ciência, gastronomia, arte, etc.). E talvez tenhamos em Portugal alguns ninhos de excelência em que a paixão por cada área é de facto alimentada. Mas se efetivamente os temos, precisamos de saber com urgência quais os espaços de ensino e trabalho que verdadeiramente alimentam a ‘paixão pela excelência’ em cada área. Esse pode ser o único preventivo do totalitarismo da sonsice e do fatalismo de um Portugal adiado e moribundo (ainda que em crescimento)!

A sonsice é, de facto, uma doença social grave em Portugal. Atinge todos aqueles que consideram haver só uma norma, mesmo que invisível, a norma dos que estão do poder. Os sonsos são uma espécie de ‘contrafacção dos maus’* e, nesse sentido, são piores que os maus pois servem os seus interesses, fazendo-se passar por bons, ou simplesmente tendo desistido do que quer que seja! Actuar em favor de quem está no poder, sem mais, é considerar que não há alternativas e tal é, em si mesmo, desacreditar da democracia, ou seja, aceitar o totalitarismo do pensamento e da actuação únicas. Cada chefe mau precisa de um exército de sonsos que o aceitem e legitimem. Nesses lugares de chefias intermédias temos quer sonsos-velhacos (verdadeiros bufos), quer sonsos-tolos (que acreditam poder estar do lado dos bons e ser nomeado por um mau). Já os sonsos-zombies acharam que esta história de bons e maus é parva e desistiram dela há algum tempo, dedicando-se a outra coisa qualquer: à corrida, à bicicleta, ao ginásio… preferindo a paixão pela serotonina ou pela proteína. De uma forma ou outra, velhacos, tolos ou zombies, os sonsos são pessoas (máscaras) que como indivíduos desistiram de existir. Tornaram-se sonsos pelo ‘medo de existir’**, um medo de existir que resulta dum fascismo social que alastra como mancha e cujos danos colaterais são ainda as inseguranças neuróticas, os ataques de pânico, síndromas vertiginosos, depressões, entre outros.

No final, os ostracizados são os apaixonados pelo seu trabalho, os que resistem e que não aceitam ser sonsos e sabem que o seu trabalho é relevante. É claro que qualquer trabalho só pode ser de facto relevante, ou seja, com impacto, se tiver um contexto generoso de acolhimento ao nível organizacional e nacional. Num país em que os sonsos triunfam, esse contexto não existe: os apaixonados sobrevivem perdendo e vendo os sonsos ‘passar-lhes a perna’ e com isso vai-se perdendo o país!

* Cláudia Lucas Chéu. Os Sonsos e as Sonsas. P3-Público 13 de Maio de 2020. https://www.publico.pt/2020/05/13/p3/noticia/sonsos-sonsas-1915975

** José Gil. Portugal Hoje. O Medo de Existir. Relógio D’Água (c2004), 2017