Uma das características marcantes da nossa longa história é a de possuirmos, desde D. Afonso Henriques, uma notável estabilidade como Estado independente. Não obstante, a história que aprendi é a de uma Nação pobre e frágil, ameaçada por um vizinho poderoso, que teve sorte para conseguir levar adiante a sua independência. A visão que, hoje, aqui trago é algo diferente, porque entendo que não éramos assim tão pobres e frágeis, pelo menos até ao dealbar do século XVI, período em que fomos um jogador destacado no campo ibérico, onde se decidiam as formas políticas do futuro e em que tivemos mais competência do que sorte.
Dom Pelágio, Astúrias
Quando, no século VIII, a Península Hispânica começou a reagir à fulgurante invasão islâmica de uma década antes, através da figura lendária de Dom Pelágio, criou-se uma unidade política líder da Reconquista, as Astúrias. Pouco depois, quando pôde expandir-se, sacudindo os mouros, as Astúrias deram lugar ao grande reino de Leão, que continuou a expansão das terras cristãs. Este reino cresceu de tal forma que acabou por desmembrar-se, originando novos reinos, primeiro o de Castela, depois o de Portugal. Quer estes três reinos, quer o de Aragão, que havia emergido das “marcas” do império de Carlos Magno, eram comandados por nobres guerreiros unidos no objectivo da Reconquista, mas enfrentados num jogo de forças opostas: independentismo (cada rei defendia a sua propriedade) e agregacionismo (cada rei procurava controlar outros, com o objectivo distante de repor a unidade política visigoda). Estas forças actuavam por dois tipos de acções, como era típico da Idade Média europeia: acção militar, sobretudo de defesa, e política de casamentos dos príncipes e infantes, visando criar oportunidades para herdar reinos adversários.
O primeiro grande perdedor neste jogo foi o reino de Leão, o reino-pai de Castela, que acabou dominado pelo filho. Enquanto Portugal fazia a sua parte, expandindo-se até ao Algarve, Castela também conquistou aos mouros novas terras a sul, pelo que acabámos por ficar com um único e poderoso vizinho ao longo de toda a fronteira.
Mas o jogo continuou, e Portugal não foi inábil a manejar as suas aptidões, bem pelo contrário. Vejamos o que diz de nós o insuspeito e eminente professor de Salamanca Manuel Fernández Álvarez:
“Desde o século XIII vemos Portugal com todas as características próprias de um Estado moderno, com as suas fronteiras bem delimitadas, a sua grande capital em Lisboa, as suas Cortes funcionando em dialéctica política com a Coroa, o seu centro cultural universitário em breve mudado para Coimbra, e o seu centro religioso em Alcobaça. De forma que o primeiro Estado nacional dos tempos modernos não é França, nem Inglaterra, nem obviamente Espanha, mas sim Portugal.”
Nesta perspectiva, somos entre os países hispânicos, na baixa Idade Média, aquele que aparece mais apto para uma posição dominante, e não o país pobrezinho ameaçado pela vizinhança.
Mesmo não sendo um rei forte e competente, como a generalidade dos seus antecessores, D. Fernando foi o primeiro a entrar em campo, invadindo Castela para as três guerras fernandinas, reivindicando o trono vago na sua qualidade de herdeiro de um rei daquele país. O êxito não foi possível, porque as forças não eram muitas e porque havia mais contendores, chegados até de França e Inglaterra, mas o nosso rei jogou como pôde. Também no tabuleiro político não teve sucesso, pois acabou por dar a filha Beatriz em casamento ao novo rei castelhano, João I, morrendo em seguida sem herdeiro varão e causando a crise sucessória de 1383/85.
Consequentemente, aqui se nos apresenta o referido João I, querendo ser rei de Portugal. Derrotado por Nuno Álvares, nos campos de batalha, e por João das Regras, no campo jurídico, deixou-nos em paz com outro D. João I, este nosso, de Boa Memória, e iniciante de uma nova dinastia: adeus Borgonha, viva Avis, prontos para conquistar o mundo! D. João I, de Portugal
As coisas dificilmente ocorrem por acaso. O já mencionado historiador espanhol atribui à forte estruturação do Estado medieval português quer a superação da crise da invasão castelhana, quer as bases para a expansão ultramarina no século seguinte.
Pondo os olhos no seu Condestável, que, após Aljubarrota e embalado contra os castelhanos, ainda invadira Castela para os derrotar na batalha de Valverde, o nosso D. João I não esperou nem um ano para atravessar a fronteira com as suas forças para combater o homónimo, em apoio do futuro sogro, o inglês João de Gante, que era candidato ao trono do país vizinho. Era a aliança luso-inglesa a funcionar, pois talvez fosse melhor ter um aliado como rei do outro lado da fronteira. No entanto, o jogo não correu bem, porque o outro João I jogava em casa.
Casado com D. Filipa de Lencastre dando lugar à “Ínclita Geração”, o mestre de Avis mostrou aos contendores que tinha força até para ser rei de terras longínquas: invadiu e conquistou Ceuta, no próprio coração da Moirama, fazendo ruborizar os castelhanos, que ainda tinham muitos mouros a Sul. Não contente com isso, mandou avançar pelo Atlântico e tomar posse da Madeira e dos Açores. O filho D. Henrique haveria de impulsionar muitas mais explorações numa empresa colossal, imprópria de um país frágil e pobre.
Mas voltemos ao xadrez peninsular onde os reis se confrontam. Já no último quartel do século XV, foi a vez de D. Afonso V invadir Castela, depois de casar-se com a sobrinha Joana, herdeira do trono. A luta foi dura e culminou na batalha de Toro, nas margens do Douro próximo de Zamora, mas não teve vencedor declarado. A política acabou por ditar que Castela não seria governada pelo rei português e sua sobrinha, mas sim pela sua concorrente Isabel e seu marido, Fernando, futuro rei de Aragão.
Isabel I de Castela ou Isabel, a Católica
Desta Isabel, depois chamada “a Católica”, temos de falar à parte. Bisneta de D. João I, tal como a Joana a quem subtraiu o trono, filha de portuguesa, neta de portugueses, e descendente de Nuno Álvares, tinha as suas ideias acerca de quem devia controlar os reinos peninsulares unidos, mas, que saibamos, nunca as revelou. Chegou a ser prometida como noiva a D. Afonso V, dezanove anos mais velho, mas recusou para unir-se ao príncipe de Aragão, não só por ser um jovem da sua idade, mas também para unir os dois reinos. Com o que talvez fosse mais fácil unificar a península. E de que reino deveria ser o rei que tudo viria a reinar?
Isabel, a Católica, teve cinco filhas e um filho. Casou a filha mais velha, também Isabel, com o príncipe Afonso, filho único de D. João II e herdeiro do trono, lançando sementes para uma união de Portugal e Castela. Não prosperaram, pois o príncipe faleceu de acidente meio ano depois. Foi a oportunidade para o cunhado do rei se tornar herdeiro, vindo a ser D. Manuel I. Que logo se casou com a princesa viúva. Dias depois da boda, a princesa foi convertida em herdeira dos tronos de Castela e Aragão por falecimento do irmão, e as novas sementes ganharam força. Concretizaram-se no príncipe Miguel da Paz, nascido em 1498.
Embora vindo à luz na desgraça da morte por parto da mãe e do profundo desgosto do pai, o pequeno príncipe parecia ter um futuro brilhante: era o herdeiro dos tronos de Portugal, de Castela e de Aragão, sendo assim jurado pelas cortes dos três reinos. O filho de D. Manuel I e neto dos Reis Católicos ia ser o rei de praticamente toda a Península Ibérica, de grandes ilhas no Mediterrâneo e de grande parte de Itália (controladas por Aragão) e, quanto às terras não cristãs, das duas partes do planeta repartidas entre Portugal e Castela no Tratado de Tordesilhas: o maior império jamais imaginado.
Em 20 de Julho de 1500, sem ter feito dois anos, o principezinho faleceu. O seu pequeno féretro jaz, meio milénio depois, ao lado dos túmulos dos avós maternos, na Catedral de Granada, talvez assinalando o desgosto da avó, castelhana, mas com muito de portuguesa, pelo plano arruinado pela morte do príncipe, facto a que ela pouco sobreviveu.
D. Manuel I ainda casou com uma cunhada, outra filha dos Reis Católicos, de quem teve muitos filhos, e ainda com uma sobrinha desta, mas os direitos de sucessão dos outros dois reinos já se tinham escapado para os Habsburgos do Sacro Império, para desventura da Espanha, desde então e até hoje dirigida por dinastias estrangeiras.
Terminava, assim, um período de séculos em que os países ibéricos se governaram a si mesmos, com sangue predominantemente ibérico, com bons ou excelentes resultados, em especial o de Portugal, que bem tentou a liderança da união e a teve praticamente ao seu alcance.
[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de Portugal.]