1Rashid Khalidi, professor com a cátedra Edward Said na Universidade de Columbia, e um dos mais renomados intelectuais e historiadores da identidade Palestiniana, deu, na passada terça-feira, uma entrevista à revista literária de esquerda norte-americana The Drift. Khalidi escreveu um dos principais livros sobre a identidade nacional Palestiniana, que argumenta ter começado a surgir no início do século XX, como reação ao Império Otomano, ao Mandato Britânico e ao próprio projecto Sionista. Este é um dos maiores mal-entendidos em todas as conversas sobre nacionalismo: as identificações nacionais não são primordiais, mas sim relacionais e muito recentes. Naturalmente, isso não as torna menos legítimas, mas dá-nos outra perspectiva sobre a sua natureza. No final da entrevista, Khalidi oferece conselhos a activistas estudantes que o estejam a ler: “Se [vocês] acreditam que este [o projecto Israelita] é um projeto colonial de settler colonialism, então vocês estão na metrópole dessa colónia, aqui nos Estados Unidos ou na Europa Ocidental”. Acrescenta ainda que, “os movimentos de libertação nacional venceram não apenas – às vezes não principalmente – por vencerem no campo de batalha na colónia (…). Os movimentos de libertação nacional venceram, em parte, porque conquistaram a metrópole.” (tradução livre). Nos últimos tempos, o paralelismo entre o colonialismo e o projecto do Estado de Israel tem sido frequentemente utilizado por franjas consideráveis da esquerda ocidental. Para além de um qualquer mecanismo freudiano em que a esquerda de países que foram impérios coloniais se tenta redimir colectivamente dos pecados passados através de uma acção presente, penso ser interessante analisar esta analogia. Não sou especialista em colonialismo, mas há, pelo menos, uma diferença fundamental.

2Ao contrário dos retornados portugueses ou dos pied noirs franceses, os israelitas não têm outro sítio para onde ir. Não podem voltar para localidades e comunidades que já não existem, para Estados que entretanto desapareceram ou para Estados dos quais não são cidadãos e de onde foram excomungados. É frequentemente esquecido que os habitantes actuais dos Estado de Israel não vieram apenas da Europa e da Rússia. Entre 1948 e a década de 80, cerca 700 mil judeus, que, entretanto, tiveram já milhões de descendentes, migraram de vários estados Árabes, do norte de África e do Médio Oriente para Israel. Essas pessoas migraram desses Estados depois de séculos como minorias étnicas sujeitas à hostilidade nestes países. A existência do Estado de Israel também se deve a esse movimento migratório e devemos questionar o que teria acontecido a essas pessoas se não tivessem tido a oportunidade de migrar para Israel. A nação de Israel não é apenas um mea culpa Ocidental após o Holocausto. A nação de Israel foi útil a muitos Estados – Europeus, Árabes, Africanos, Asiáticos – para que esta etnia historicamente perseguida pudesse finalmente sair do seu território e concentrar-se toda num só lugar. Se quiserem, chamem colonizadores a estes migrantes. Mas, ao contrário dos verdadeiros colonizadores, estes não têm outro sítio para onde ir e, quando arriscaram ficar noutro sítio, a sua sobrevivência e dignidade foi sistematicamente colocada em causa. Não significa que, depois, não tenham, como povo maioritário, cometido incontáveis erros e actos opressores, mas parece-me que a vivência, o contexto e a história deste povo é significativamente diferente daquilo a que vulgarmente chamamos de colonialismo. Na verdade, parece-me ser essa uma das grandes dificuldades éticas deste caso: ambos os lados contêm forças simultaneamente emancipatórias e autoritárias. Para quem quer ver tudo a preto e branco e definir bons e maus como nas histórias para crianças, é difícil conceber os matizes desta histórica.

3Naturalmente, os Palestinianos também não têm outro sítio para onde ir. Como todos os outros povos deste mundo, merecem, portanto, um Estado independente, livre de ocupações externas. Os palestinianos têm direito a que a sua auto-determinação não seja constante e sub-repticiamente minada e têm direito a não ser sistematicamente forçados a migrações em massa. No entanto, é importante sublinhar que os palestinianos também deveriam ter direito a um Estado que não seja capturado nem dominado por organizações terroristas. Se me parece evidente que Israel nunca aceitará uma solução de dois Estados enquanto considerar que o terrorismo do Hamas é uma ameaça tão grande à sua segurança e sobrevivência, também me parece evidente que uma organização terrorista e com a componente ideológica do Hamas nunca poderá ser um movimento de libertação. O Hamas falha redondamente em conseguir criar uma condição indispensável a quase todos os movimentos nacionais, de libertação ou cívicos: o respeito e solidariedade de uma grande coligação de actores políticos, com ideologias distintas, pertencentes a essa nação ou grupo e, simultaneamente, o mesmo respeito e solidariedade de uma grande coligação de actores externos. Para além disso, o mundo que o Hamas defende é medieval, não respeitando nada, nem ninguém. A auto-determinação é um direito colectivo, ao contrário de quase todos os restantes direitos humanos. Mas pergunto: como pode um povo colectivamente escolher a sua autodeterminação como nação sendo brutalmente oprimido dentro dessa nação?

4Este é um debate onde quase ninguém (excepto os verdadeiramente loucos ou radicais) diz ser a favor do Hamas, ou a favor do desaparecimento da Palestina ou a favor do desaparecimento de Israel. No entanto, pelo discurso, por aquilo que enfatizam, aquilo que escolhem não dizer, é possível detectar em muita gente uma certa benevolência por posições extremistas. Por isso, faço aqui um apelo a todos os cronistas, a todos os comentadores de jornais, a todos os utilizadores de redes sociais e a todos aqueles que discutem à mesa de jantar: por favor, tenham mais atenção e respeito pelas palavras que utilizam, elas carregam consigo muito mais do que o literal. Reconheço que fiquei verdadeiramente chocada nos últimos dias com muitas das reacções que fui vendo. Já sabia que a espécie humana tinha espécimes verdadeiramente estúpidos e ignorantes, mas estas semanas foram um lembrete da sua verdadeira dimensão e proliferação e do qual não me vou esquecer tão cedo.

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5De facto, assistimos a uma radicalização bastante evidente do discurso público acerca deste conflito. Tornou-se aceitável um ministro Israelita descrever como “animais” todos os palestinianos. Tornou-se aceitável no “Ocidente” utilizar tropos antissemitas, desvalorizar o terrorismo se este for contra Israelitas e ser explicitamente contra a existência de Israel sem oferecer a este povo nenhuma alternativa real, sugerindo, portanto, o seu desperecimento justo do mapa. Chocou-me o conteúdo de vários cartazes e dizeres que observei nas manifestações, em várias cidades Americanas e Europeias. Chocou-me que uma organização de mais de 300 professores de Ethnic Studies da Universidade da Califórnia tenham escrito uma carta aberta onde desaprovam o presidente da sua universidade por este ter chamado de “terrorismo” aos actos do Hamas. Entre muitos outros exemplos.

Podemos questionar-nos sobre o porquê desta radicalização no Ocidente em relação a este conflito. Não tenho dúvidas de que, grande parte das reações extremas que observamos, vindas de vários lados, é motivada por política local, por estratégias e ódios locais, que nada têm que ver com os Israelitas ou os Palestinianos. Muitos querem apenas “ganhar pontos” num qualquer jogo político doméstico, exclusivamente aquele que lhes interessa. No entanto, outras coisas também terão contribuído para esta maior abertura a posições abertamente anti-Israelitas. O esvanecer da unipolaridade norte-americana terá dado a muitos o à vontade para dizer o que talvez sempre pensaram sobre Israel, mas antes silenciavam. O efeito de massas, onde um individuo se entusiasma no meio da turba para ir dizendo coisas cada vez mais radicais que o vizinho, também terá tido o seu papel. O aumento da distância temporal relativamente ao apogeu trágico do antissemitismo na Europa será porventura outro factor. E, naturalmente, a radicalização significativa da política Israelita e das acções dos seus governos, nos últimos 20 anos. É inegável que o poder crescente da extrema-direita, dos ultraortodoxos e a radicalização da própria direita ex-moderada na política Israelita terá contribuído para que menos pessoas no Ocidente vejam o regime Israelita com bons olhos. Claro que nada disto justifica palavras de ódio de ambos os lados. Como felizmente vivo numa sociedade com liberdade de opinião, ouço-as, mas não consigo perceber o extremismo que poderá levar à sua justificação.

Infelizmente, esta é uma direcção oposta à que seria necessária para a resolução progressiva do conflito. O fortalecimento da esquerda, centro e direita moderadas israelitas seria essencial para uma resolução do conflito, bem como para uma despolarização da opinião pública nos Estados que poderão servir como pontes externas. A radicalização dos Palestinianos, do Irão e de muitos regimes da região também não ajuda a resolução e torna tudo significativamente mais difícil. Terei um enviesamento profissional, mas para mim é evidente que as mudanças das relações entre Estados são sustentadas por mudanças favoráveis ou desfavoráveis que ocorrem na política doméstica dentro desses Estados.

6Tenho visto cada vez mais utilizações abusivas dos termos genocídio, limpeza étnica, apartheid, totalitarismo, entre outros. Preocupa-me tal deriva, pois não creio que seja um caminho saudável. Acima de tudo, há uma tendência para a hipérbole a que todos nós somos tentados nesta era onde conseguimos ver a brutalidade em tempo real através de ecrãs, confortavelmente sentados nos nossos sofás. Mas esta hipérbole não é necessária e é de quem se esqueceu (felizmente) o que é viver a guerra. A guerra sempre foi bruta, violenta, impiedosa e horrível, não é preciso ir buscar conceitos que devem estar reservados para os piores crimes da humanidade.

Noto também uma contradição interessante. Aqueles que são rápidos a nomear de apartheid o tratamento que o Estado Israelita dá aos seus cidadãos árabes ou aos próprios cidadãos palestinianos no papel de Estado ocupante, tendem a não utilizar o termo apartheid para descrever o brutal regime de diferença entre cidadãos homens e mulheres que se vive em Gaza. De forma quase paralela, aqueles que apontam o carácter desigual do regime Palestiniano, tendem a escolher não ver a desigualdade inaceitável entre cidadãos de diferentes etnias e crenças religiosas actualmente em vigor no Estado de Israel, que supostamente é uma democracia liberal. Quem realmente defende a igualdade, não a pode querer aplicar selectivamente apenas para “ganhar” argumentos.

7Nos últimos anos, muitos intelectuais (pseudo-)cosmopolitas, principalmente à esquerda, têm defendido a solução de um único Estado para aquela zona, ao invés da famosa solução de dois-estados. Esse único Estado albergaria palestinianos e israelitas, judeus e muçulmanos, cristãos e agnósticos, numa democracia onde todos pudessem conviver como cidadãos iguais. Evidentemente, uma utopia irrealizável. Algumas versões desta utopia propõem um Estado federal ou binacional. Nenhuma destas opções me parece minimamente realista. Não foi realista em 1948 e é ainda menos realista hoje, depois de décadas de sangue e sofrimento. Não é possível obrigar pessoas que não querem viver juntas a serem felizes na coabitação. Mais grave, não há absolutamente nenhuma garantia de que a minoria étnica desse suposto Estado único não fosse sistematicamente oprimida ou mesmo erradicada. Muitos dos que defendem esta ideia sabem disso e é, em parte, também por isso que a desejam. Outros, admito, serão simplesmente ingénuos ou ignorantes.

O cosmopolitismo parece-nos, a nós indivíduos de Estados liberais no século XXI, uma opção muito mais sedutora do que o nacionalismo. Afinal de contas, vivemos em estados com igualdade cívica e política entre cidadãos, entre homens e mulheres, entre crentes de todas as religiões. Assim, tendemos por vezes a pensar que criar desigualdades em direitos e liberdades humanas pelo simples acto de desenhar fronteiras é injusto. No entanto, antes desse cosmopolitismo, que é bem-vindo, deve estar a garantia de sobrevivência e auto-governo dos povos. Não nos podemos esquecer de uma das maiores lições do século XX: mesmo que não seja ideal, fazer corresponder nações a Estados foi a única forma de conseguirmos prevenir atrocidades motivadas pelo desejo de não viver em conjunto com pessoas diferentes. Podemos não gostar do nacionalismo exagerado (eu certamente não gosto), mas foi dentro dos Estados-nação que conseguimos garantir coisas como os direitos individuais, a representação política e a criação dos Estados sociais. O internacionalismo e cosmopolitismo que talvez desejemos para este século só são possíveis porque começámos primeiro por construir essas nações. Só pessoas seguras dentro dessas nações podem começar a arriscar abrir-se para o outro, diferente deles.

Nas palavras do jornalista da Atlantic Yair Rosenberg, “o que os Palestinianos e Israelitas precisam é de um divórcio, não de um casamento rápido à força”. Quando questionado sobre a viabilidade de uma solução de dois Estados face ao número considerável de colonatos Israelitas que hoje residem na Cisjordânia, Rosenberg respondeu de uma forma que nos pode parecer simplista: “Uma solução de dois Estados é simplesmente uma linha no mapa, com a Palestina de um lado e Israel do outro. As minorias em cada um desses Estados podem migrar para o outro Estado ou decidir ficar como minorias. Muito mais realista do que esperar que ambas as populações conseguiam viver em harmonia num único Estado.” Concordo que esta é a única solução simultaneamente realista e desejável, mesmo que os detalhes concretos sobre a execução possam variar significativamente.

8Nenhum lado é totalmente vítima nem totalmente opressor. O oprimido nalguns domínios da vida, pode frequentemente ser opressor noutros. Ser oprimido hoje, nalgum aspecto concreto das nossas vidas, não nos torna necessariamente boas pessoas. E nada nos garante que o oprimido, se colocado numa situação de distribuição de poder diferente ou mesmo no lugar do opressor, não seria tão ou mais injusto e brutal. Reconhecer que ambos os lados são compostos por uma miríade heterogénea de indivíduos que retêm agência – agência para escolher matar, para tomar decisões erradas, para serem muito imperfeitos – é absolutamente essencial se queremos que essa agência seja utilizada e canalizada para progredir e fazer coisas boas. Pessoas sem agência são inteiramente vítimas do que lhes acontece mas, por isso mesmo, são também incapazes de agir e reagir no sentido político do termo. Aqueles que projectam pessoas e povos inteiros sem agência estão na verdade a dizer algo muito sinistro: estão a dizer que só eles, iluminados salvadores externos ao problema e replenos de boa vontade, poderão resolver a situação de forma adequada. Recuso-me a aceitar essa visão do mundo.