Gonçalo Homem de Almeida Correia
De vez em quando surge em conversa a pergunta: “para viajar gostas mais de cidades ou de natureza?”. Na minha amostra parece que a maioria das pessoas estão mais inclinadas para apreciar aquilo que a mãe natureza nos deu. Não me interpretem mal, consigo ficar esmagado com a beleza do nosso planeta, mas seja por defeito de formação ou simplesmente por azar (ou sorte), talvez genética – educação? Não há nada, para mim, como uma cidade com todas as suas nuances, arquiteturas, pessoas, espaços públicos, pequenos cafés ou obras monumentais, como teatros e óperas. A natureza é quase sempre, por natureza, bela. E estou convencido que mesmo que o planeta mude – e já está a mudar – dificilmente deixará de nos proporcionar espanto com a sua beleza massiva, verde ou desértica, muitas vezes feérica. Difícil foi para o Homem criar toda a estética e complexidade organizada que são as cidades que temos, mesmo aquelas cidades que trazem tantos desafios, tanto desespero e esforço a quem nelas vive. Porque nelas também habita a nossa esperança, a oportunidade e a felicidade. O encontro com aqueles que procuramos está lá, mas também o encontro com os que são diferentes de nós, até mesmo os que são o nosso completo oposto, criando oportunidades únicas para o diálogo. A cidade clarifica e confirma, mas também contradiz as nossas mais profundas convicções.
Escrevo este texto depois de mais uma visita a uma das minhas cidades de sempre, Nova Iorque. Finalmente, depois de três anos de covid surge a possibilidade de revisitar aquela que chamam “capital do mundo”. Não sei se é. Talvez haja porventura várias capitais deste planeta. Mas Nova Iorque será sempre Nova Iorque. Penso que não seja um amor tão fácil para um europeu como possa ser o amor por Paris ou Roma. Mas é amor à primeira vista para quem, como eu, ama cidades. Como um flâneur obcecado movo-me pela cidade com avidez: quero mais um edifício, um canto, um café de estética única, um restaurante, um ângulo perfeito, um monumento, quero pessoas interessantes para observar. Quero ficar sentado só a observar. Nova Iorque é uma loja de doces e eu sou uma criança sedenta de compreender como é possível tanta beleza, tanta energia, tantas contradições. Quero os doces todos da loja!
À minha frente no metro, que é velho e barulhento, mas eficiente, senta-se agora uma mulher de meia-idade, que volta e meia grita impropérios para um ponto indistinto da carruagem. A força e velocidade da cidade gera as vítimas habituais de quem não suportou o vórtice da grande urbe. E se esta é uma cidade com vítimas! “Adoro Nova Iorque, mas nunca viveria aqui” diz alguém ao meu lado. Há quem viva e seja feliz, mas também há a mulher à minha frente no metro. E há quem seja tão diferente dos vizinhos lá nos Estados do interior do país que a vinda para Nova Iorque se transformou finalmente na sua tão desejada chegada a casa. Como dizia Saramago: “sempre chegamos aonde nos esperam”. Eu diria que nem sempre, mas vale a pena tentar. E há por certo uma tribo à espera de cada um dos que se aventuram na cidade, não tenham dúvidas.
Por coincidência, um casal jovem português entra na carruagem e senta-se noutro banco. A mulher calou-se finalmente e nem os vê. Estão apaixonados. Talvez em lua de mel. A cidade é campo fértil para o amor. Como não se apaixonar num passeio pelo Central Park ou simplesmente observando a parte baixa de Manhattan a partir da ponte de Brooklyn. Entre os painéis eletrónicos frenéticos da Times Square, o “barulho das luzes” convida a um beijo fortuito, ou mesmo, para os mais exuberantes, a um grande beijo digno da cena final de um daqueles filmes de Hollywood. Estamos no centro do mundo e é impossível deixar de sentir que temos muita sorte por estar na big apple.
Motivado por um amigo que esteve na cidade há pouco tempo decido visitar o museu do 11 de Setembro; no entanto, não estou convencido que vá aprender grande coisa: “já vi muitos documentários”. Mas descubro que o museu é, afinal, o expoente máximo daquilo que os norte americanos são capazes de fazer em museologia. Neste edifício contíguo ao local onde outrora se levantavam orgulhosas as duas torres, os seus criadores levam-nos pela mão numa viagem emotiva do antes, durante e depois dos ataques. Foi um dos momentos de maior choque na minha vida o momento em que vi as torres colapsar em direto na televisão. Era na altura um inveterado, exagerado, talvez um pouco ingénuo, admirador dos Estados Unidos.
No início do percurso pelo museu penso para mim que seja o que for que lá tenham para me mostrar, não irei ceder a nenhum tipo de sentimentalismo. Ao meu lado, à medida que descemos às profundezas das fundações do que foram outrora os edifícios, por entre pedaços de aço retorcido, ouço os suspiros e o choro mais ou menos contido de quem me rodeia. Há também quem observe tudo como se fizesse uma análise forense. Estou deliciado com os pormenores da construção do edifício como engenheiro civil que sou. E os elevadores? 99 elevadores em cada torre! Equivocado penso que a exposição já está a acabar e não estou claramente preparado para o que ainda aí vem. O visitante é convidado a entrar numa espécie de linha do tempo minuto a minuto dos eventos daquele dia fatídico da cidade das cidades (fotografias não são permitidas). As vozes gravadas em todo o tipo de situações fazem-se ouvir a cada canto. Vozes daqueles homens e mulheres que se foram e daqueles que conseguiram escapar – e que haviam de sentir a culpa de sobreviver. Lido bem com a experiência. “Sou um cientista”. Ao meu lado um miúdo norte americano aponta para uns quadrados estranhos de plástico retorcidos que foram resgatados dos destroços – entre tantos outros destroços – e pergunta o que são. A mãe diz-lhe que são dispositivos para guardar informação. “São disquetes!”. Descubro que estou a ficar velho. Sorrio. Tem piada saber o que são disquetes no mundo atual de tão alta velocidade de upload e download.
Prosseguimos minuto a minuto, e não é possível a ninguém ficar insensível ao que aconteceu. As mensagens de voz enviadas pelos passageiros dos voos e dos trabalhadores das torres às suas famílias são reais e estão gravadas. Na parte final, numa parede escura, frases aleatórias ouvidas ou escritas nesse dia de má memória, e nos dias seguintes, passam vagarosamente. Detenho-me a ler algumas dessas frases. Alguém escreveu: “Preciso de saber se foste trabalhar hoje. Liga-me rápido por favor!” Não está assinada. Outra frase surge momentos depois: “Não queria que aquele dia acabasse nunca pois apesar de ser o pior dia da minha vida, foi o último dia que passei contigo”. Também não está assinada. Impossível conter as lágrimas. Olho à minha volta e consigo não ser observado. Posso escapar invicto. A máscara ajuda. Ainda está tudo muito próximo na minha mente. Já tinha 21 anos, ainda tinha 21 anos. Realizo de repente que por mais vezes que venha a Nova Iorque não mais será possível conhecer e entrar nestas torres. Fico desapontado como um miúdo mimado que quer um brinquedo esgotado. Queria poder ver tudo nesta cidade!
As torres gémeas nunca foram completamente aceites pela crítica no seu tempo. “Mastodontes”. “Símbolos de poder” disseram alguns dos seus críticos. Para mim e para muitos, dois magníficos edifícios lineares, esbeltos e imponentes que demonstram o génio e a capacidade humana de projetar e construir estruturas que nunca de outra forma existiriam neste planeta. As cidades também são isso, uma expressão do que nós somos, das nossas ambições, do nosso génio e sensibilidade, mas também da nossa vontade de domínio do espaço e dos outros. Estes edifícios eram parte do imaginário associado à terra das oportunidades a que os Estados Unidos da América estão para sempre associados. Como dois faróis para as massas de sonhadores, as torres estavam lá para guiar a esperança de quem queria ser livre e queria ser feliz na cidade, mesmo que trabalhando muito para isso. Hoje o local é um espaço público de lembrança, mas também de futuro. A nova torre, One World Trade Center, proporciona uma bela substituição. A estação de metro de Santiago Calatrava, no subsolo, contrasta e complementa. O que dizer das entradas em mezanino sobre o grande átrio da estação a competir com a entrada da Grand Central Terminal mais a norte na cidade? Os meus parabéns Sr. Arquiteto!
Atordoado com a experiência do museu, passo pelo Joe’s pizza, ali muito perto, para uma fatia saciante final. Por pouco não me consigo sentar. A fila é enorme e estamos num Domingo à hora do almoço. Há turistas, mas também há nova iorquinos. A mulher ao meu lado, claramente americana, sorri e atira: “isn’t this the best pizza in the city?” (Não é esta a melhor pizza da cidade?). Aceno que sim e aprecio a candura. Está a chegar a hora de partir e não me apetece. O tempo cinzento dos últimos dois dias deu agora lugar a um daqueles dias de céu azul intenso e sol radioso que, na minha mente, só Nova Iorque proporciona (ou talvez também Lisboa?). O frio é cortante, mas quero percorrer mais uma rua, dobrar mais uma esquina. Descobrir mais um edifício neoclássico. Ou mais um daqueles arranha céus modernos. Ou uma construção dos tempos coloniais que tenha sobrevivido à voracidade do ritmo de crescimento. Já não há tempo para ir ver mais nenhum museu. Nem de visitar mais uma das muitas livrarias que a cidade oferece. Meu Deus, vai ficar tanto por ver! Ainda bem.
Gonçalo Homem de Almeida Correia é doutorado em transportes pela Universidade Técnica de Lisboa (Instituto Superior Técnico) e agregado em sistemas de transportes pela Universidade de Coimbra. Tem uma carreira universitária de mais de 12 anos sendo atualmente Professor na Universidade Técnica de Delft, Países Baixos, e Professor convidado na Universidade de Beijing Jiaotong em Pequim, China, nos seus programas de engenharia e planeamento de transportes.