«Oh, Lisboa, meu lar!»
Vem esta crónica-ensaio a reboque da lixeira a céu aberto em que se transformou Lisboa numa semana de duas grandes festas nacionais, o Natal e o Ano Novo, propícias como nenhumas outras à produção desenfreada e à acumulação caótica de toda a espécie de lixos e resíduos nas ruas e praças da cidade. Excedendo-se ritualmente em desperdícios, o febril desjejum dos portugueses nesta quadra é marcado por uma autêntica fome de boi, ao ponto de um marciano, acabado de aterrar neste ponto do globo, poder talvez exclamar: “Que diabo, os naturais deste lugar devem ter passado fome durante séculos… as suas televisões mostram-lhes comida 24 horas por dia!”.
Amarga ironia do destino trazida pelo espírito da própria quadra, nesta Lisboa festiva, com as suas ruas engalanadas e iluminadas, torna-se por estes dias impossível fazer justiça a duas velhas e enobrecedoras máximas que a olisipografia consagrou: “quem nunca viu Lisboa nunca viu coisa boa” e “cheira bem, cheira a Lisboa”.
É certo que já lá vai o tempo das escravas negras, chamadas calhandreiras, que do século XV ao XIX calcorreavam Lisboa de lés a lés transportando sobre o ombro ou equilibrados na cabeça grandes potes altos de cerâmica (calhandros) com as imundícies e os dejectos dos seus senhores, que elas diligentemente vertiam no cais do Tejo, entre a ponte Nova da Casa da Índia e a praia da Bica do Sapato. Fora o alhures. Contudo, seja naqueles tempos, seja hoje, há coisas que nada ou pouco mudaram se observadas na escala do tempo geológico.
Com efeito, seja depositado em aterros sanitários ou incinerado, é da sua própria condição itinerante que o lixo (do latim lix, aquilo que nem o fogo consome) ande sempre em busca de um sítio certo ou de um destino… final adequado, e seja por isso provisoriamente transferido para “outro lugar”, desejavelmente longe dos habitats humanos, fora, portanto, do alcance da vista e do olfacto dos seus afanados produtores. Sob este aspecto, quase se poderia afirmar que é a extraordinária perenidade do lixo que possibilita a perenidade do próprio homem, pois entre a degradabilidade do lixo e a degradabilidade do homem há mais do que meros laços ocasionais de parentesco. Chama-se-lhe, sem qualquer juízo moral, corrupção. Um fenómeno da Natureza.
O lixo não larga o homem. E o homem não larga o lixo. Seja sob a forma de gases com efeito de estufa e poluição atmosférica, terrestre e aquática, seja em depósitos subterrâneos com impermeabilização dos terrenos ou a céu aberto, seja ainda em amontoados submersos ou flutuantes, o lixo será sempre, como observou a antropóloga Mary Douglas, “matéria fora do lugar”, pois seja ele garbage (resíduos orgânicos), seja rubbish (tudo o resto…), o tratamento do lixo faz e fará sempre lixo. Por isso, para sossego definitivo do nosso prurido ambiental, deve dizer-se que não há, nunca haverá, “lixo zero”.
E eis que se levanta já aqui o problema da articulação política entre a deslocalização global do lixo e a deslocalização global causada pelas migrações, problemas conexos, pois só compreenderemos cabalmente o funcionamento do mercado mundial do lixo quando compreendermos também o funcionamento do mercado mundial das migrações. Tal como na cidade o lixo não possui idealmente nem lugar, nem dignidade, nem visibilidade, assim o migrante deslocado à força do seu lugar de origem deve no seu novo lugar de residência viver à margem da sociedade que o recebe, escondido tanto quanto possível dela. Nele se personifica o homem-lixo da nossa época, sem direitos cívicos e submetido à mais cruel das reciclagens: a separação e transformação de merda má em merda boa. Aliás, o próprio percurso migratório do lixo comprova que onde houver lixo estará sempre o homem verdadeiramente em sua casa, por mais deslocalizado e desterritorializado que seja o processo da sua reciclagem. Como lhe compete, o lixo joga sempre um jogo sujo e podemos muito bem imaginar que o ataque de furiosos bandos de aves a seres humanos em Bodega Bay, Califórnia, ficcionado por Alfred Hitchcock no filme “Os Pássaros”, é uma resposta alucinada de corvos, gaivotas e pardais ao gás metano que escapa das chaminés de um aterro sanitário. Com muita seriedade e rigor, convém neste passo recordar que muitos dos judeus que entraram nos campos de extermínio do Terceiro Reich só de lá saíram pela… chaminé. Com os ventos de feição, o fedor da incineração dos seus corpos nos fornos crematórios hitlerianos poderia manifestar-se num raio de trinta quilómetro e causar desmaios.
Mas venhamos ao nosso assunto. Sendo o motivo imediato desta pequena reflexão sobre o lixo a degradante e nauseabunda paisagem de montanhas de lixo amontoado nas ruas de Lisboa, a sua remota razão de ser mergulha, no entanto, as suas raízes mais fundo, visando interrogar o dispositivo de formação da “subjectividade” (horrível termo filosófico!) na contemporaneidade. Que semelhanças existem, afinal, entre a reciclabilidade do lixo e a reciclabilidade do homem? Neste particular, não entraremos gratuitamente no reino da escatologia se começarmos por recordar a identidade material entre a reciclagem do lixo e o funcionamento do sistema digestivo no homem. Não é certamente um acaso que quando a parte orgânica do lixo passa ao tratamento biológico e é misturada com água, triturada e centrifugada, ela permaneça durante algumas semanas em enormes silos, aos quais os especialistas chamam simplesmente “digestores”. Mas, adiante.
Alguns leitores mais velhos recordarão com facilidade a seguinte declaração do Livro I de O Capital de Karl Marx: «A riqueza das sociedades nas quais domina o modo de produção capitalista apresenta-se como uma imensa acumulação de mercadorias». Pois bem, em vista do nosso propósito modificaremos a palavra final desta sua célebre sentença: «A riqueza das sociedades nas quais domina o modo de produção capitalista apresenta-se como uma imensa acumulação de lixos».
Pois é. A crer nos sinais disponíveis, jamais qualquer comunidade humana terá produzido na história tanta quantidade de lixo, tanta variedade de lixo e a tanta velocidade, como aquela que caracteriza as nossas sociedades contemporâneas, cuja organização do trabalho se funda na indústria e na alta tecnologia. Aliás, uma sociedade de “consumo” ou de “bem-estar” é, na definição liberal destes termos, aquela que produz lixos em variegada abundância. O lixo é, pois, um sinal exterior de riqueza, pois quanto mais a economia cresce mais consumimos, e quanto mais consumimos mais e mais resíduos produzimos. Falta apenas observar que o lixo – de acordo com o princípio malthusiano que rege a sua toxicidade – cresce muito mais rapidamente do que os meios tradicionais disponíveis para o reciclar. Com efeito, os modos ditos naturais de tratar o lixo há muito tempo já que entraram em crise de obsolescência, numa espécie de menopausa e andropausa da própria humanidade e da sua utilidade. A coisa atingiu tais proporções que dispomos hoje de uma autêntica plêiade de economistas, sociólogos, ambientalistas, urbanistas, activistas e jornalistas, conhecida por “escola do decrescimento”, empenhada em reduzir a produção e em fazer do “decrescimento” um programa político universal. Convém, no entanto, sublinhar que, para poderem ser consequentes com os princípios que dão forma à sua apocalíptica e cavernícola doutrina, os próprios “decrescimentalistas” deverão reconhecer de bom grado que das suas forjas ou oficinas sai muito lixo científico, uma espécie singular de lixo de que se não fala tanto quanto se deveria falar, a qual, no entanto, pode ser extremamente perigosa e nociva para a saúde pública sempre que ela se mostra incapaz de se elevar acima do fundamentalismo naturalista mais chão e demagógico.
Explorando, por fim, as potencialidades heurísticas de um interessante conceito do antropólogo Marc Augé, devemos, uma vez mais, relembrar que o lugar próprio do lixo é sempre um “não lugar”. O que isto significa é que o lixo aparece como o-lugar-do-que-não-está-no-seu-lugar, de tal modo que o lugar-do-lixo ou um lugar-lixo é um “não lugar”. O lixo, mormente o lixo militar e tecnológico contemporâneo, é sempre aquele veneno ou activo tóxico que não está no sítio certo, algo que, por isso mesmo, tem de ser mudado permanentemente de sítio, com a secreta esperança de que nesse novo “sítio”, a descobrir algures na Terra, o lixo possa desaparecer como “lixo”, extinguir-se, reactivar-se e reciclar-se sem deixar rasto. Por aqui se vê de que modo o lixo está submetido a uma singular lei do progresso: dado que é impossível reciclar ao ritmo a que se desperdiça, o lixo deve poder mudar constantemente de lugar para assim poder vir a estar em “lugar nenhum”. Até há bem pouco tempo, a China, por exemplo, recebia 45% dos resíduos plásticos mundiais, mas muito recentemente inverteu as suas políticas públicas ambientais e procedeu ao desvio desse material para países como a Tailândia, Índia, Indonésia, Malásia. Está por ora por fazer o mapa global de tais desvios. Uma coisa é certa: ninguém quer lixo à porta de sua casa. Não será por um mero acaso que, tanto Marte como a Lua, estão hoje tão presentes nas passerelles políticas da moda.
O problema, aqui, é que vivemos numa época em que os lugares da terra já estão, por assim dizer, todos ocupados, não sobrando hoje praticamente nenhum espaço para onde mudar os resíduos ou venenos de toda a espécie. E foi precisamente por causa de toda a sorte de lixos radioactivos altamente pestilentos, contaminadores e, no fundo, inextermináveis, que o direito internacional público inventou uma entidade jurídica de excepção chamada “países de destino”. De um ponto de vista especulativo, este conceito é assaz interessante porque significa que o lixo só terá futuro onde também lhe estiver atribuído um destino, ou seja, o lixo, em permanente peregrinação, anda sempre em busca de um destino providencial, no termo do qual, ele poderá finalmente repousar numa espécie de paz farmacológica – algures, noutro lugar, que não o seu lugar de proveniência ou de origem. De modo que a condição ontológica do lixo é a de um exílio eterno. E daqui decorre o principal significado político das migrações globais.
Com efeito, de ora em diante, todo o lixo de excelência deverá possuir um porvir, um destino, em suma, uma identidade secreta que satisfaça a curiosidade de um novo e avançado tipo de explorador, empenhado em valorizar os lixos combustíveis dos aterros sanitários, alguns deles ricos em metais, esses resíduos praemium que nenhum arqueólogo do lixo está hoje em condições de recusar. Afinal, os “resíduos” são hoje encarados como “recursos” numa economia dita circular. Neste particular, o engenho humano tem ido tão longe que alguns destes “não lugares” são já hoje objectos de visitas turísticas organizadas e acessíveis apenas a bolsas de excepção, pois não é a qualquer um que é dado poder fazer a experiência de um “não lugar” deste teor. Associada ao lixo gravita hoje em dia toda uma redentora promessa de viagem, de migração e, consequentemente, de mudança de lugar.
Assim, o que até há bem pouco tempo foi considerado um sintoma de pobreza, doença e, por conseguinte, infâmia, é agora um sinal de riqueza, vigor e distinção. O ponto é que os nativos desses “países de destino”, à semelhança do que acontece com um animal assustado, fogem de tais lugares-lixo como o diabo foge da cruz. É curioso porque há aqui um evidente paralelismo entre os fluxos migratórios e a transladação de lixo: em ambos os casos deve ser encontrado um sítio – noutro lugar – para tudo aquilo que o não tem – neste lugar. Um pouco à maneira dos campos de concentração nazis que, de um modo biopolítico, constituíam um “não lugar” jurídico, na precisa medida em que configuravam uma “lacuna da lei” prevista pela própria lei, também o “não-lugar” do lixo é uma espécie de vazio, um conteúdo sem um continente possível capaz de o acolher. Por isso, como em muitas outras áreas das nossas sociedades contemporâneas dominadas pelo princípio fetichista da mercadoria, o lixo de excelência, o lixo cinco estrelas, o lixo enfim, com futuro, é adorado exclusivamente pelo facto mesmo da sua extrema raridade.
Mas atenhamo-nos finalmente ao princípio da reciclabilidade do lixo e ao modo como ele nos poderá instruir quanto perguntamos pela nossa condição política contemporânea. Se também o homem actual é cada vez mais concebido e desenhado em função de uma possibilidade de reciclagem permanente, é apenas porque também ele está desde o início programado segundo as mesmíssimas leis que governam o tratamento e a reciclagem do lixo. Na verdade, é este estar originariamente concebido e disposto para a reciclagem que melhor caracteriza a “subjectividade” contemporânea. É, por isso, num sentido muito concreto que se pode afirmar que o homem contemporâneo é um homem sem qualidades, numa palavra, um homem-lixo. Efectivamente, para que o princípio da reciclabilidade se aplique aprioristicamente ao homem exige-se que este seja desenhado de modo a dever poder perder todas as suas qualidades, pois o que é a transformação em lixo senão a perda acelerada de todas as qualidades rígidas de um dado material? E não, prometo não chamar aqui à colação a Inteligência Artificial.
Quem se atreverá hoje a questionar que a reciclabilidade e a adaptabilidade permanentes exigidas ao homem hodierno são as mais eficazes garantias económicas de uma sua completa desqualificação política? Na verdade, que a sua “subjectividade” se torne cada vez mais instável e precária, que ela se veja cada vez mais moldada pelos atributos da ductilidade, da elasticidade, da flexibilidade e da modularidade, significa apenas que, tal como todo o lixo genuinamente reciclável, isto é, completamente depurado de qualidades visíveis, lixo-limpo e, por isso, lixo-luxuoso, também o homem contemporâneo se tornou num objecto de uma permanente re-engineering, crescentemente tiranizado pelo que os ideólogos da administração total da vida chamam long-life education. É, portanto, com muita seriedade que se pode concluir que o homem contemporâneo é um homem-lixado.
Por último, uma palavra final de respeito e de consideração para todos os homens e mulheres do lixo que durante a noite e madrugada, enquanto nós dormimos, catam os resíduos urbanos nas ruas e praças das nossas cidades. Talvez não haja trabalho mais duro, mais estigmatizado e mais mal pago do que o seu. (De acordo com a estatística disponível, cada português, em 2020, terá produzido uma média de 512 quilos de resíduos urbanos. Neste mesmo ano, Portugal importava mais resíduos dos que aqueles que exportava.) Finda a jornada, uma vez de regresso às periferias de Lisboa, seja na Carris, seja no Metro, seja nos comboios, os homens e as mulheres do lixo são olhados como leprosos e ninguém os quer sentados nos bancos a seu lado. Cheiram mal. Cheiram a lixo.