Na quinta-feira, em Florença, o prof. Marcelo participou numa conferência sobre o “futuro da União Europeia”. Aí, amanhou uns palpites acerca das próximas “presidenciais” americanas em benefício dos elementos da audiência que ainda não tinham adormecido ou escapado da sala. Para Sua Excelência, cito quase com exactidão, a vitória de Biden será boa para a Europa e a vitória de Trump será boa para a Rússia. No mesmo dia, dois ou três jornais portugueses noticiaram o episódio em rodapé. Eu dediquei o meu programa na Rádio Observador ao dito. Que eu saiba, fui caso único. Ninguém, e sublinho a palavra, comentou as declarações do homem que formalmente desempenha as funções de presidente da República.

Das duas, uma. Ou a generalidade do abundante “comentariado” concorda com o prof. Marcelo ou o prof. Marcelo já atingiu um grau de inimputabilidade que desmotiva as críticas e embaraça os críticos. Se gostaria de acreditar na segunda hipótese, inclino-me para a primeira. É que há por aí gente que não evita avaliar o que lhe aparece à frente. Às vezes avalia, até com simpatia, o candidato do Livre às “europeias”, uma personagem tão burlesca que é impossível não ter sido concebida de propósito. E quem leva a sério o comediante do Livre, que a bem ver nem existe, não deve deixar de levar a sério o comediante de Belém. E, muito provavelmente, de achar pertinentes as suas “considerações”.

Entretanto, no mundo dos adultos onde o “comentariado” não entra e que a famosa “bolha mediática” não reflecte, as “considerações” do prof. Marcelo envergonham. Envergonhar não é sinónimo de surpreender. Estamos a falar da criatura que começou a presidência com uma viagem a Cuba para homenagear o Carniceiro de Havana e que, há menos de uma semana, lamentou em nome do povo português a morte do Carniceiro de Teerão. Pelo meio, vão oito anos e tal dedicados a arrastar a figura do chefe de Estado, e com frequência o próprio Estado, por um lamaçal sem fim. Embora as afirmações em Florença não desmereçam esse valoroso percurso, não há maneira de as pessoas decentes se habituarem ao lamaçal. A vergonha é imensa, e só a falta dela explica o silêncio que se seguiu.

Vale a pena explicar as razões, da vergonha que não do silêncio? A título de higiene, esclareço que nada disto pressupõe a veneração de Trump, de resto um espécime pouco venerável. O critério são os factos. E um facto assaz evidente é o de que o representante oficial de uma nação soberana não pode aliviar-se de opiniões alusivas às escolhas democráticas de uma nação soberana diferente. A coisa piora quando as opiniões em causa não possuem qualquer vínculo à realidade e obedecem a vozes que ecoam na cabecita do prof. Marcelo ou nas redacções do Público e do Expresso.

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Com que então o sr. Putin prefere Trump a Biden para realizar os seus sonhos imperiais? Claro que sim, e por isso é que esperou que Trump saísse da Casa Branca para invadir a Ucrânia, como em 2014 não esperara que Trump entrasse na Casa Branca para anexar a Crimeia. Com os democratas no poder, de Obama a Biden, o sr. Putin não brinca. Nem o sr. Putin nem, acrescente-se dois meros exemplos, os amáveis taliban e os senhores que tutelam o Ministério da Saúde de Gaza, vulgo o popular Hamas. Trump, é sabido, iniciou a IIIª Guerra Mundial e, se reeleito, prepara-se para iniciá-la de novo. Com Biden, incapaz de se calçar sozinho, a paz reina, na Europa e no planeta inteiro. Planeta que, aliás, é plano. E de cujos céus os aviões despejam químicos para aniquilar a humanidade. E os homens, que nunca foram à Lua, conseguem menstruar se o desejarem com força. E a força de todos libertará a “Palestina” do genocídio e do apartheid.

O prof. Marcelo, que fizera uma carreira estimável nas variedades televisivas, jamais se distinguiu pela sofisticação intelectual excepto na perspectiva dos pasmados que lhe admiravam os truques: produzir baixa intriga e fingir ler baixa literatura. Porém, a situação em que se exibe desde 2016, e receio que com tendência de agravamento nos últimos tempos, é de outro nível. Artistas medíocres temos com fartura, em concertos pagos por autarquias e em lugares de aparente responsabilidade. Infelizmente, a simples mediania já não contém o prof. Marcelo, que a cada oportunidade pulveriza recordes de inconveniência e devaneio. Por mais do que um motivo, compreende-se que o prof. Marcelo veja em Biden uma inspiração, mas era escusado inspirar-se tanto. O homem, em suma, não está bem. E um país em que as classes política e jornalística, para usar um horrendo termo em voga, “normalizam” as respectivas acções não está muito melhor.

Restam dois anos, e não se vislumbra quem, divino ou terreno, possa ajudar o prof. Marcelo a terminar o mandato, antes que sem ajuda ele termine com tudo em redor. A dignidade não é para aqui chamada.