Da janela do terceiro andar, enquanto fumo, observo o túnel onde alguém colou um aviso. Imagino que foi um vizinho zangado com quem ali deixa sacos de lixo. Vou vendo quem passa, sobretudo de noite, e remexe nos sacos, à procura de qualquer coisa que valha a pena. De vez em quando, sempre lá de cima, vejo pessoas pararem e lerem o aviso, depois vem o vento e o papel quase esvoaça: mas no dia seguinte está de novo colado, e até crianças param para ler, seguindo as letras com o indicador, para lerem melhor. O lixo no túnel vem e vai, uma cadeira de verga, sacos com roupa, peças de uma impressora. Vou vendo e especulando sobre o aviso, pensando em quem o colou, ralhando em silêncio com a impaciência do vizinho zeloso.
Teço outras sentenças do alto do terceiro andar. Reparo que só as senhoras idosas param no meio da rua à conversa umas com as outras e aí ficam no passeio longos minutos. Passa outra senhora e a conversa é interrompida para um “boas-tardes, os meninos vão bem?”. A minha geração já não conversa a meio do caminho como conversavam as nossas avós, penso eu, enquanto o cigarro se finda.
Uma mulher brasileira sobe a rua, ao telefone, indiferente ao aviso. “É preciso ir com cuidado, para não machucar seu pai, viu?” Um jovem pintor, cujo atelier fica em frente ao túnel, e alguns polícias aproveitam a corrente de ar de Novembro para ali fumarem. Chegam rapazes de entregas para o prédio em frente, e a luz do segundo andar acende-se. A vizinha do primeiro sai com o cão para a rua, mas esquece-se do chapéu de chuva, e volta atrás. Passa um homem bem vestido que também remexe nos sacos de lixo deixados em todos os caixotes, rua fora. No alojamento local, duas espanholas abrem a porta e fumam em pijama, sentadas num cadeirão.
A vista da janela do terceiro andar é repleta de prefácios e grandes começos e também de finais e posfácios que se prolongam no tempo. É parecida com uma sinfonia com vários finais sucessivos, que se sucedem até à última nota. Podia descer à rua e ler o aviso, tirar as teimas. Mas prefiro ficar aqui em cima a fazer literatura fácil.
Que será das vidas que vamos fechando, onde se arrumará o arquivo das fotografias de ontem? Vistos daqui, desfocados, todos os vizinhos têm um período azul e momentos de euforia, eras de silêncio e hiatos risonhos e improfícuos, tempos alegres, tempos saudosos. Já não sei quem é que notava, falando de Clarice Lispector, que as suas personagens tinham acompanhado a sua vida. Foram jovens, enquanto Clarice foi jovem, casaram, quando casou, tiveram filhos, quando ela os teve, amadureceram quando a escritora se viu mulher madura, envelheceram com ela, quando ela envelheceu. Diante desta justaposição bela, penso na vida das pessoas que me rodeiam e na minha. Será que aquilo que criamos e deixamos no mundo — o que somos capazes de ver — espelha quase sempre o momento que estamos a viver?
Passo perto do túnel, após vários dias, e leio o que está escrito no aviso: “Meiguinha, pêlo curto, muito amiga de humanos, precisa de cuidados médicos, por favor ajude-nos a encontrar a nossa gatinha”. Da janela do terceiro andar, o vizinho triste era um vizinho zangado. Passei duas semanas a tresler o aviso e a tresler o vizinho e, de caminho, a maldizer a vizinhança quando afinal era só uma família aflita para encontrar a gata que fugiu.
A cidade está cheia de possibilidades de nos enganarmos a respeito uns dos outros, precisamente porque estávamos atentos e não porque não prestámos atenção. O caso da gatinha perdida podia entrar numa aula de interpretação literária. A vizinha à janela estava tão atenta, acompanhou com tanto cuidado as saídas e as entradas do túnel, que compôs um romance errado sobre o bairro inteiro. O livro que escrevi à janela “fazia todo o sentido”, como se diz agora, mas era um livro falso. Talvez as paredes da cidade sejam texto para as mulheres a fumar à janela, abertas ao equívoco e ao riso.
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O aviso
A cidade está cheia de possibilidades de nos enganarmos a respeito uns dos outros, precisamente porque estávamos atentos e não porque não prestámos atenção.