Quem observasse a realidade ou o mercado das apostas eleitorais (cuja precisão se revelaria assinalável) estranharia o seu flagrante contraste com as sondagens e com as projecções da generalidade dos especialistas, comentadores e pivots. Mas, enfim, os especialistas, comentadores e pivots deviam saber do que falavam, e as empresas de sondagens, que diziam ter finalmente apurado um sistema de projecção eleitoral meticuloso e fiável, deviam estar certas – e davam um empate técnico entre os dois candidatos à presidência americana, entremeado aqui e ali pela ligeira vantagem de um dos contendores, que ora era insignificante porque estava “na margem de erro” (sobretudo se a vantagem fosse republicana) ora indiciava uma clara “dinâmica de vitória” (sobretudo se fosse democrata).

O balde de água fria

Não vale a pena olhar o coro de lamentações e agoiros sobre a manipulação de “redes sociais” e “fake news” (de um só lado, evidentemente) que vai por esse mundo de Cristo perante o que aconteceu: se temos Gengis Kahn, se Hitler, se Nero na Casa Branca, é escolher entre o leque de tiranos avançados por variadíssimos comentadores de referência. Uma coisa é certa: o que aconteceu na terça-feira, 5 de Novembro, não devia ter acontecido, não podia ter acontecido. Houve jornalistas que choraram e universidades americanas que decretaram períodos de nojo e de terapia ocupacional pós-traumática.

À medida que as assembleias de voto iam fechando na América e a onde vermelha ia chegando, ainda se esperava que a onda azul – previsivelmente mais tardia – chegasse para varrer tudo; até porque se antecipava que Estados como o Texas e a Flórida, declaradamente republicanos, resvalassem para a esperançosa categoria de “Estados oscilantes”.

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Doutíssimas análises de académicos e jornalistas sobre determinantes identitárias (de resto muito pouco fluídas) que pesariam na hora da escolha, à boca da urna, encheram a noite: o voto das mulheres, novas e velhas, solteiras e casadas, com filhos ou sem filhos, brancas, latinas e afro-americanas, rurais ou urbanas; o voto dos homens, novos e velhos, rurais ou urbanos, brancos, hispânicos e negros. Todas as minorias americanas historicamente dominadas foram contempladas, até as que transitavam de dominadas a opressoras ou que acumulavam as duas valências, como os homens afro-americanos que, “por misoginia”, pudessem, eventualmente, votar Trump, ou como as mulheres latino-americanas que, “por atraso ou preconceito religioso”, reagissem negativamente à “liberdade reprodutiva” promovida pela candidata democrata. Mas, tudo somado, “sempre que as mulheres se mobilizavam, ganhava o Partido Democrata” e as mulheres haviam de acorrer em força para salvar a Democracia. E, como era sabido, a Esquerda tinha, tradicionalmente, “as minorias” na mão.

A narrativa entrava depois nalguma hesitação e a sociologia analítica também: algumas vozes marxistas mais velha-escola chamavam a atenção para a impossibilidade de ter, lado a lado, Musk e os trabalhadores brancos do Rust Belt, vítimas da deslocalização das indústrias, e os comunistas clássicos não deixavam de lamentar que a saudosa luta de classes Proletariado versus Burguesia tivesse ido para ao caixote do lixo da História, vencida pelos marxismos imaginários ou pelas preocupações ora demasiadamente umbilicais ora demasiadamente planetárias, ora muito micro ora muito macro, da nova esquerda radical, que assim ia abandonando os trabalhadores.

Raízes históricas

A verdade é que antes da Esquerda ter abandonado os trabalhadores já muitos trabalhadores tinham abandonado a Esquerda, a começar pelos franceses que, perante a desindustrialização acelerada pós-Guerra Fria e a glorificação dos partidos tribunícios da Esquerda da imigração desregulada e culturalmente hostil ou de difícil integração, migraram para partidos como o Front National (hoje Rassemblement National).

Era uma reacção popular ou populista com raízes históricas: no “petit peuple” encolerizado e arruinado pelo escândalo do Panamá nos finais do século XIX, que está na base dos movimentos nacionais-populistas franceses; nos blue-collars americanos que, no tempo da guerra do Vietname, votaram em massa em Nixon, e depois em Reagan, nos anos 80.

Foi a renovação deste fenómeno, indiciando o fim de um ciclo e o princípio de um outro, que surpreendeu muitos a 5 de Novembro. Porque o que se está a passar na América e no mundo euro-americano é o início de um ciclo em que valores e princípios políticos muito atacados e marginalizados pela cultura liberal e internacionalista do primeiro pós-Guerra Fria ressurgem fruto dos desequilíbrios internos e geopolíticos causados pela sua marginalização. A nação, a religião, a família, a justiça social, a liberdade de pensamento e de expressão voltaram em força pela voz e o voto “do povo”, por vezes através de excêntricos arautos.

Isto porque os “cêntricos” arautos do conservadorismo popular se deixaram impressionar e intimidar pelos anátemas e interditos de uma Esquerda que, a partir dos anos 60 do século passado, se desligou dos “socialismos reais” procurando, com base num “jovem Marx” e numa Escola de Frankfurt redescobertos e adaptados, reactivar a revolução possível.

Como observou na sua lucidez tranquila, quase reservada, Alexis de Tocqueville em L’Ancien Régime et la Revolution, a Revolução Francesa tinha criado, pela primeira vez, “uma pátria comum intelectual da qual homens de todas as nações se podiam tornar cidadãos”, uma coisa que, acrescentava, só se podia encontrar “em algumas revoluções religiosas”.

Um novo ciclo

Um mundo sem fronteiras sexuais, familiares e nacionais definidas ou permanentemente renegociáveis, reinventáveis e instrumentalizáveis num emaranhado de opressores e oprimidos e de activismos racializados, de género ou planetários foi a última tentativa à Esquerda de instaurar uma nova ideologia global com contornos religiosos e abrir um novo ciclo revolucionário. É daí que vem, nas últimas décadas, a vaga de Nova Esquerda a que os quadros dos partidos tradicionais do centro-direita foram cedendo passo, silenciosa ou entusiasticamente, por temor, táctica, respeito, desejo de “modernidade” ou adesão, dissociando-se progressivamente do seu povo.

A resistência popular ao credo imposto e ao “alheamento das elites” teria de chegar. E chegou com a vaga nacional-conservadora e a revolta popular perante a tentativa de destruição de tudo o que articula o mundo há milénios – do corpo e da vida à família, da terra à liberdade. E a reacção acabou por encontrar padrões de rejeição supra-nacionais.

Por agora, foi nuns Estados Unidos profundamente divididos, nos mesmos Estados Unidos que, com Ronald Reagan e George H. Bush, assistiram à derrota e à libertação do império comunista e da velha “ideologia global” da Esquerda, que Donald Trump e D. J. Vance alcançaram a grande vitória estadual e popular de terça-feira, 5 de Novembro, prenunciando um novo ciclo.