Quando há uns anos apontei, num artigo publicado neste mesmo órgão informativo e de forma primigénia, sobre a promiscuidade entre o poder político-militar russo e a Comunidade Ortodoxa Russa (cOR), fui convidado para participar num programa da Rádio Observador e num outro do Canal Televisivo SIC sobre se a invasão da Ucrânia pelos exércitos russos configurava uma oximórica “Guerra Santa”. Devido a compromissos então inadiáveis, não compareci a nenhuma das ocasiões. Mas a reflexão sobre o tema permaneceu, compreensivelmente, na minha mente.

Curiosamente, não ouvi, nem vi, quaisquer intervenções de quem quer que seja que me tenha substituído. Quiçá ainda estejam no éter das redes informáticas. Não sei. Sei, sim, que ainda me recordo do que na ocasião refleti sobre essa temática. A saber: nunca, mas nunca, se pode invocar um ato de guerra como sendo “santo” à luz dos textos cristãos ortodoxos ortodoxamente interpretados. Houve situações num passado, relativamente distante, que contrastam na prática e de forma oposta ao que acabo de referir? Sim, é verdade. É mais um exemplo de como quem mais deveria amar a Quem tanto nos amou O continuou desumanamente a crucificar.

Claro que há quem possa morrer santamente numa “guerra defensiva”; mas isso seria perecer numa pugna: diante de uma agressão injusta, concreta e com uma aspiração legítima a que restabelecesse a paz sem se reivindicar pagas territoriais ou mudanças de estatuto social ou religioso, acaso tal luta defensiva se mostrasse vitoriosa. Mas, salvo erro de apreciação da minha parte, isso é algo diferente do que justificam tais palavras. “Morrer santamente” numa tal “guerra defensiva”, trata-se de alguém aceitar que lhe seja tirada a vida num momento em que está a pugnar pela vida dos demais. É, por conseguinte, dar amorosamente a sua vida para que os demais reconheçam a Vida.

É evidente que se o “teste do algodão” fosse aqui aplicado – «à luz dos textos ortodoxos [de uma dada crença] ortodoxamente interpretados [por essa crença]» – o que mencionei acerca do Cristianismo não poderia ser sustentado em referência a uma série de outras crenças, onde a “Guerra Santa” é um dado endógeno e estrutural dessas outras crenças. Basta ver, apetecer-me-ia dizer, o que se está a passar no Médio Oriente na relação religioso-bélica de tantos elementos religiosos islâmicos ortodoxos face aos judeus, a Israel e à sua população. E isto, a ponto de a mais importante autoridade religiosa da maior fação dessa religião ter aquiescido às congratulações dos ataques de 7 de outubro de 2023 – algo posteriormente reforçado com palavras ainda mais hediondas.

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Mas, pelos vistos e contra o que inicialmente me custou a acreditar, há Cristianismos e Cristianismos. Na verdade, sempre estimei que a sinfonia entre o poder político Russo e a cOR era íntima, mas não ao ponto de se chegar a poder defender que a segunda alguma vez considerasse o que está a ocorrer na Ucrânia como sendo uma “Guerra Santa”. É evidente que tem havido milhares de mortos e deslocados de ambos os lados do conflito e que, na sua dimensão caritativa e espiritual (que inclui o apoio sacerdotal aos combatentes), a cOR tem desempenhado um papel não negligenciável. Mas “Guerra Santa”? Não cria que se pudesse chegar a uma tal barbaridade.

Estava errado. Brutalmente errado. Efetivamente, a 27 de março a cOR considerou o conflito russo com a Ucrânia como sendo, precisamente, uma “Guerra Santa”, embora com os olhos postos mais além, em territórios de outros países outrora parte da “Grande Mãe Rússia”. Uma Guerra, por conseguinte, com uma confusa dimensão religiosa explícita e assumidamente imperialista em que Vladimir Putin surge, em panfletos dados aos militares, como o próprio bíblico arcanjo Miguel – aquele que destrói, num combate celeste apocalíptico, os exércitos demoníacos (nota: as primeiras palavras que se veem à esquerda do livreto dado aos militares e presente, em imagem, na ligação anterior diz: «“[Que Deus] conceda vitória ao Supremo Comandante-em-Chefe Vladimir, o corajoso Arcanjo e Governante da Rússia e amante de Deus»).

“Confusa”, escrevi eu mais acima, pois não há, nem sequer em matéria religiosa, o desejo de uma absoluta des-Ocidentalização da Rússia na linha de uma eslavofilia radical. Há, sim, o acreditar – ingenuamente? – que o papel de “Terceira Roma” faz de Moscovo, do patriarcado moscovita da cOR e da Rússia como estado uma espécie de tripla aliança contra quem ataca os valores cristãos. Valores estes, que são vistos, com contumácia e pelos líderes da cOR, em risco de se diluírem no pandemónio civilizacional, cultural, social e religioso que medra, por todos os lados, num Ocidente anteriormente associado aos frutos da árvore do Catolicismo e aos dos arbustos de alguns movimentos provindos das arcaicas reformas protestantes.

Uma Rússia e uma cOR a lucrarem convictamente do que o Ocidente lhes deu e dá, mas recusando tudo o que creem ser um risco para as suas identidades, bem como para a própria identidade desse mesmo Ocidente, entretanto crido pela cOR como havendo sido “satanizado” devido ao seu afastamento da religião cristã. Sim: na Ocidentalidade, vivemos tempos estranhos no âmbito religioso, com o vácuo daquela “árvore” e daqueles “arbustos” a ser preenchido por estranhas pseudo-religiões ou pelo tresmalhado ateísmo. Mas… “satanizado”? A sério?

Mas vejamos com maior atenção algumas das afirmações proferidas no documento “O presente e o futuro do mundo russo”, exarado no supracitado dia 27 de março, para, depois, daí tirarmos algumas possíveis ilações para esses mesmos presentes e futuros, não mais referidos só «ao mundo russo», antes a nós e ao Mundo em geral (incluindo com realce a dimensão religioso-cristã associada ao Cristianismo).

A frase fundamental do documento – lavrado há meses pelo Conselho Mundial do Povo Russo, mas só agora dado a conhecer após a vitória presidencial de Vladimir Putin – diz: «a Operação Militar Especial é uma Guerra Santa, uma guerra em que a Rússia e o seu povo, em defesa do espaço espiritual único da Santa Rússia, cumprem a missão “daquele que a [a iniquidade] restringe” (cf. 2Ts. 2,7)». Um pouco mais à frente lê-se: «o destino supremo da existência da Rússia e do mundo russo que ela criou – a sua missão espiritual – é ser “aquele que restringe” global, para proteger o Mundo do mal».

Já no seu terceiro ponto, os redatores deste documento – desde religiosos da cOR a militares, passando por políticos – vem patente o que nós mesmos já assinalámos acima aquando da referência a um “olhar para além da Ucrânia” – neste documento denominada de «as terras do sul da Rússia» – : «a Rússia deve tornar-se um dos principais centros de um Mundo multipolar, orientando os processos de integração e garantindo a segurança e o desenvolvimento estável em todo o espaço pós-soviético (…) regulando, além do mais, o equilíbrio dos interesses estratégicos e agir como um baluarte da segurança e de uma ordem mundial justa no novo Mundo multipolar».

É neste contexto, de uma endeusada visão histórica russa, que vem a justificação da invasão da Ucrânia: «a possibilidade da existência neste território (…), onde deve ocorrer a reunificação do povo russo, (…) de um regime político hostil à Rússia e ao seu povo, ou de um regime político dirigido por um centro externo hostil à Rússia, deve ser inteiramente excluída».

No que a mim diz respeito, e salvaguardando a possibilidade de estar a tresler estas afirmações – certamente coordenadas entre o Kremlin e o Mosteiro de Danilov –, parece-me claro que elas são um endossar religioso explícito do perpetuar do presente conflito bélico bem no centro de uma Europa que geograficamente se estende, e mentalmente se entende (embora menos), até aos Urais.

Mas não só: é igualmente o iníquo alavancar espiritual para futuros empreendimentos análogos noutras zonas geográficas. E isto é, se não estou enganado, uma sinistra forma de se ir preparando mentalmente os russos para uma maior convocação ao serviço militar ou para validar outras quaisquer decisões, certamente impopulares entre a generalidade da população russa, relacionadas com conflitos bélicos: o presente e os eventualmente futuros. É como se quem assinou este documento, com o Patriarca da cOR de Moscovo (Kiril) à cabeça, desejasse que o Estado Russo fosse a “Jerusalém Celeste” e a cOR fosse, ou agisse em lugar de, Deus.

Numa das suas homilias, a 10 de Setembro de 2006 e aquando da sua segunda visita apostólica à Alemanha enquanto Papa, Bento XVI fez duas afirmações capitais, às quais ligou uma questão não menos fundamental: «o Mundo precisa de Deus. Nós precisamos de Deus. Mas de qual Deus?». Que coragem e humildade terão sido necessárias a Bento XVI para ter feito esta pergunta num Mundo em que já se ia querendo, em velocidade acelerada, diluir tudo o referente ao divino numa cacofonia indistinta.

Eu possuo uma admiração e um apreço imenso pela espiritualidade e a mística dos grandes mestres cristãos russos e sei, também com estoutros, que, ao contrário do sonhado por Putin e Kirill, o Deus único e verdadeiro de que precisamos, ontologicamente e na nossa morfologia infinita, é o Deus-Amor e não o deus dos mísseis. Ou, nas palavras com que Bento XVI respondeu àquela sua questão: «o Deus que encontramos n’Aquele que morreu na Cruz (…) e nos diz “não” à violência, “o amor até ao fim”»

O deus de Putin-Kirill não é esse Deus. É um deus-pesadelo que esteia a vontade da reescrita, ou do estrito rasgar, de todos os pactos e de todas as garantias internacionais existentes desde o fim do último conflito global em 1945. Se assim é, devemos estar conscientes dos riscos que já vão chegando até nós sob diversas formas. Não sei se a Rússia já é um Estado totalitário, mas sei que Kirill e o seu entourage manifestam, ao aceitarem ser parte integrante da política expansionista estatal russa, um autoritarismo inimaginável no coração de um cristão. Autoritarismo esse, expresso por exemplo na censura total que foi implementada dentro da cOR.

Também sei que esta posição da cúpula da cOR, tornada cada vez mais num meio de propaganda do Estado, não poderá deixar de levar a um maior descrédito, quer da cOR, quer do seu líder. Isto, por seu lado, impedirá que a mesma se apresente como uma alternativa ao Catolicismo e aos movimentos protestantes, um pouco por todo o Mundo onde chegou o Cristianismo e onde as pessoas estão desiludidas com a confusão instalada nesses filões religiosos. Que pessoa verdadeiramente liberta do seu egoísmo agressivo e conhecedora de Deus e pode aspirar por uma crença agressiva e confrontativa e contentar-se ela? Não O crucifiquemos mais! Descrucifiquemo-Lo, isso sim, das nossas insanidades que brotam de não acreditarmos, como Deus acredita, no ser humano.