Todos os dias, de manhã, a minha mãe faz café.

Quando não o faz de manhã, fá-lo à noite, antes de se ir deitar, como forma de poupar tempo na manhã seguinte. As manhãs são sempre atribuladas, mas as manhãs das mães conseguem ser sempre mais atribuladas do que o habitual.

A minha mãe pega na cafeteira e desatarracha-a, abre o pacote de café, mete uma colher de café no interior da cafeteira, volta a atarrachá-la e mete-a ao lume. E espera.

Cá por casa, os anos passam, as máquinas de café automáticas compram-se, usam-se e desgastam-se e a minha mãe continua a beber o seu café de cafeteira.

Nunca vi a minha mãe a utilizar uma máquina de café automática. A Modernidade vai sempre arranjar forma de se elevar face a todos os antigos costumes, mas há sempre um grupo de resistentes que teimam em ficar subjugados às novas modas que vão surgindo.

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A minha mãe é uma resistente.

A minha mãe não usa as máquinas automáticas porque acha que o café que delas sai não sabe a café -~  a «café verdadeiro», leia-se. A minha mãe diz que não gosta do sabor desse género de café, automático e robótico, e que por isso prefere fazer o seu. Percebo-a. São gostos.

Se eu também tivesse vivido toda a minha vida a beber café de cafeteira, dificilmente iria parar de fazer café de cafeteira. A minha mãe conheceu o mundo numa altura em que o café se fazia em cafeteiras ardentes. É natural que não se queira desprender desse mundo para se entregar a outro.

Nasci na época em que nasci. A minha mãe nasceu na época em que nasceu. A minha época, como toda e qualquer outra época, não é nem a melhor época, nem a pior. A minha época é a minha época e a minha época tem os costumes e as manias da minha época. A minha época é diferente da época da minha mãe.

As pessoas acham sempre que é impossível contrariar as épocas nas quais estão inseridas. Nem toda a gente se apercebe, mas é possível vivermos a nossa vida desobedecendo, por vezes, às regras da nossa época. Eu faço-o todos os dias em tudo aquilo que eu faço, pelo menos vou tentando.

Hoje em dia, o mundo é rápido e, a cada dia que passa, mais rápido fica. O mundo nunca esteve tão rápido como está agora. Este processo é veloz e é exigente, pois pede muito de nós. Todos os dias, alguma coisa muda e nós temos de nos habituar a esse novo estado de coisas. O processo sobre o qual o mundo à nossa volta se trasfigura é egoísta e singular, pois a nossa opinião nunca é requisitada. Nós não temos palavra nesta matéria. O mundo muda e nós não temos como parar esse processo. O tempo passa, o mundo muda e nós somos obrigados a mudar com ele.

O mundo muda. Mas a minha mãe não muda. A minha mãe não muda todas as manhãs. vA minha mãe não vai mudar enquanto continuar a fazer o seu café de cafeteira.

Todas as manhãs a minha mãe bebe o seu café, umas vezes mais à pressa do que outras – as manhãs das mães são sempre as mais atribuladas.

Na cafeteira fica sempre um restinho de café, porque a minha mãe, naturalmente, não o bebe todo. Todas as manhãs há sempre um restinho do café feito pela minha mãe no fundo da cafeteira.

Quando me farto da minha época, do meu mundo e dos cafés automáticos, espreito para dentro da cafeteira e, havendo ainda café no seu interior, sirvo-me e bebo-o e encontro-me com a minha mãe, no mundo dela.