Finalmente, houve alguém que nos explicou que andámos este tempo todo enganados. Há uns meses, o britânico Gary Younge provocou algum burburinho ao contestar uma verdade estabelecida no jornalismo desde que Gutenberg inventou a prensa. Apesar de ter estado no The Guardian durante duas décadas, o que pode toldar a lucidez da mente mais brilhante, Gary Younge fez uma observação muito esclarecida e muito esclarecedora numa palestra na City University, em Londres. O que ele disse foi isto: “Sempre nos ensinaram a frase segundo a qual quando um cão morde um homem isso não é notícia, mas quando um homem morde um cão já é. Só que, muitas vezes, o valor noticioso de alguma coisa está precisamente no facto de ela se repetir. Há coisas que acontecem com uma tal regularidade e previsibilidade que os jornalistas simplesmente deixaram de reconhecer o seu valor noticioso. Muitas das coisas que passámos a aceitar como normais adormeceram a nossa curiosidade sobre porque é que elas são inaceitáveis. Devemos perguntar: porque é que os cães continuam a morder as pessoas? Quem são os donos destes cães? E porque é que são sempre as mesmas pessoas a serem mordidas?”.

São todas excelentes perguntas que os jornalistas deviam fazer mais vezes — e que, segundo Gary Younge, muitas vezes não fazem porque os mordidos não são eles. Nesta semana, por exemplo, aconteceram duas coisas que, com o passar do tempo, todos “passámos a aceitar como normais”: uma greve nas escolas e uma greve no Metro de Lisboa. Em muitas pessoas, a repetição das greves provoca um bocejo ou motiva uma piada. Mas não devia, porque essa repetição mantém a histórica desigualdade da sociedade portuguesa.

No agrupamento de escolas D. Filipa de Lencastre, em Lisboa, os pais dos alunos lembraram há dias, num misto de desespero e impotência, que os filhos já perderam, até agora, pelo menos uma semana de aulas. Sendo que, como explicaram com desanimado realismo, aqueles estudantes terão de “concorrer em pé de igualdade pelo acesso ao ensino superior, daqui a mais ou menos seis meses”, com outros alunos que foram ungidos com a extraordinária regalia de poderem assistir a todas as aulas do currículo.

A outra greve desta semana foi no Metro de Lisboa. Lá está: é o habitual nos transportes públicos. Sempre que alguém depende do Estado para se deslocar do sítio A para o sítio B, nunca sabe se sairá do primeiro ou como acabará no segundo. Na Transtejo/Soflusa, quando não há greves, há paralisações, e quando não há paralisações, há plenários — o que não há, recorrentemente, são barcos. E, na CP, bastará talvez recordar, a título de ilustração, os números que foram apresentados no início de julho de 2023, na véspera da Jornada Mundial da Juventude: naquela altura, já tinha havido 98 dias de greve, o que equivale a mais de metade dos dias do ano sem comboios.

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Na relação dos cidadãos com os serviços públicos, vemos periodicamente cães a morder pessoas. Mais e pior: vemos periodicamente cães a morder sempre as mesmas pessoas. São aquelas pessoas que não têm dinheiro para porem os filhos em escolas privadas nem têm dinheiro para comprar um carro. São os mais desprotegidos. São os mais pobres.

Gary Younge tem, de facto, razão: estas greves acontecem com uma tal regularidade e previsibilidade que os jornalistas simplesmente deixaram de reconhecer o seu valor noticioso. Os meios de comunicação social noticiam a sua existência com o mesmo desprendimento de quem anuncia que a chuva molha ou que o sol se põe. É inaceitável que, ano após ano, continue a haver longas semanas sem aulas e longas semanas sem transportes — mas a repetição desta desconsoladora realidade “adormeceu a nossa curiosidade sobre porque é que elas são inaceitáveis”.

No final de uma semana como esta, o país devia estar a perguntar, de forma incessante: “Porque é que os cães continuam a morder as pessoas? Quem são os donos destes cães? E porque é que são sempre as mesmas pessoas a serem mordidas?” Mais dia menos dia, alguém vai ter de dar respostas.