Em tempo de ida a banhos, estive a ler um livro de Alain Corbin e Hervé Mazurel – Histoire des sensibilités.

O livro, evidencia aquilo que nem sempre vemos ou queremos ver: as perceções sensoriais, as emoções, os sentimentos, as paixões, organizam-se em dados quadros culturais, não são imutáveis ou iguais, de época para época, de sociedade para sociedade. Quer dizer, a maneira como nos emocionamos e sentimos está condicionada pelas estruturas culturais onde crescemos e vivemos.

Exemplos fáceis de compreender: há desportos que levam ao paroxismo emocional pessoas nos EUA – o futebol americano, por exemplo – e que pouco dizem aos europeus; na Europa continental, o entusiasmo em torno do críquete é quase nulo, mas é um jogo que desperta muitas emoções na Índia.

Repare-se, também, em tipos de artes performativas em diferentes pontos do mundo, e na maneira como aderimos (ou não) às mesmas – assistir a um espetáculo de Kabuki em Tóquio não terá similar adesão emocional de um japonês e de um ocidental.

Como português, emociono-me com o nosso hino, mas esse sentimento não existe, quando oiço hinos de outros países.

Ou falemos do sentimento de culpa. É um sentimento muito enraizado em países católicos, mas menos naqueles que não professam, maioritariamente, o Catolicismo, como é o caso da China.

E mesmo as doenças, a sua existência e classificação: o conceito de burnout, associado a um esgotamento por excesso de trabalho, nem sequer existia como categoria analítica há cem anos. Poderá dizer-se que o conceito da doença não existia o que não significa que a doença não existisse. Será? Ou estaremos perante um tipo de doença que se origina face ao conjunto de estímulos e pressões da sociedade contemporânea?

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Entretanto, as ciências cognitivas atuais, nomeadamente, a neurobiologia, amiúde advogam que as nossas emoções e sentimentos são, essencialmente, explicáveis pela física e pela química, fazendo dos humanos uma espécie de resultado da genética e das dinâmicas da “mecânica de fluídos” do organismo.

Talvez se possa dizer que a biologia do cérebro (e do organismo em geral) ajuda a compreender parte importante do nosso comportamento. Mas, para perceber a individualidade de cada um e a diferença entre diferentes comunidades no tempo e no espaço, temos de procurar na história cultural, e nas muitas maneiras como a relação entre Humanidade (s), Território (s), Clima (s), criaram e transmitiram diversos olhares sobre o mundo. Ou seja, com origem numa mesma biologia, temos diferentes sociedades e padrões culturais.

E agora, se procurarmos fazer um exercício ao contrário: será possível, a partir de diferentes comunidades humanas, criar um padrão cultural único, que contribua para organizar uma estrutura neurobiológica uniforme, que, por sua vez, unifique formas de emoções e sentimentos?

É isso que está, cada vez mais, a acontecer, através do capitalismo emocional.

O que é? Um novo estado sócio-económico que resulta da Internet e das redes digitais (Eva Illouz, Les sentiments du capitalisme) – a apropriação holística dos afetos, transformando todas emoções apreensíveis em mercadorias. Se Adorno e Horkheimer, no seu texto de 1944 –A indústria cultural – a iluminação como engano em massa – retiram conclusões negativas da massificação dos bens culturais através da produção industrial e do modo como este modelo retirava autonomia crítica e diversidade às populações, e, nas últimas décadas, se teorizou a “comodificação cultural” – tornar mercantis todos os bens culturais tangíveis e intangíveis – a circunstância atual aprofunda a apropriação capitalista de bens pessoais (as emoções)  – através de uma forma mais penetrante, a manipulação e apropriação das emoções individuais e coletivas, orientando as perceções, os comportamentos, com formas sofisticadas de condicionamento.

Atualmente, as condições de massificação através dos media desmaterializaram-se e tornaram-se fantasmáticas, já não são objetos de consumo, passaram a ser parte integrante da arquitetura emocional individual e social – não se veem, não se identificam, mas têm um papel importante na modelação do pensar, sentir e agir. Os modos como olhamos, como sentimos, estão, cada vez mais, orientados por formas de olhar e sentir induzidas online. Formas que estão a conseguir a convergência emocional das populações, num tempo curtíssimo e numa escala muito alargada,  através deste novo capitalismo, agora dominante – customização, por via da análise comportamental digital e produção, distribuição, venda, de emoções, de forma personalizada, cobrindo largos domínios, desde o pensamento político à fé, do modo de nos apresentarmos a nós próprios e aos outros, às maneiras como sorrimos e choramos e porque sorrimos e choramos. Parte do modelo, implica a produção e distribuição gratuita de bens e serviços, que permite, ao mesmo tempo, a valorização de ativos de consumo pelos quais há que pagar, gerando novas formas de adição, num esquema similar ao utilizado pelos traficantes de droga, mas num ambiente digital permitido pela lei.

Desde o dealbar das redes sociais, os mercados e os detentores de capital financeiro e tecnológico, evidentemente, aperceberam-se da existência de um filão a explorar – a geração de dependências, adições emocionais – pelo acesso aos dados individuais e da criação de novos serviços e produtos que proporcionam controlo comportamental e lucro a escalas antes inimagináveis.

O filão de acesso direto à intimidade de indivíduos, grupos e sociedades através das redes digitais e de contactos online direcionados a altamente preparados para influenciar os destinatários é um risco para o qual não estávamos preparados como pessoas e como Estados e comunidade internacional.

Como escapar à predação do capitalismo emocional?

Temos de acrescentar ao “direito de desligar” o “dever de desligar”. Estar menos tempo online. Aceder a fontes credíveis de apresentação da (s) “realidade (s)”, da “verdade (s)”.

Comparar diferentes notícias e conteúdos sobre o mesmo tema. Criar distância emocional sempre que preciso e analisar o sentido do que é dito.

Mais uma vez, o processo educativo, desde a infância, é fundamental, para criar capacidades de enfrentar a avalanche de ofertas sensoriais, emocionais, que nos são feitas por segundo. A construção de novas reputações de referência – autoridades, instituições – que combatam a manipulação e uma melhor regulação dos produtos e serviços online são, também, essenciais.

É bom ser desafiado para as emoções das artes e da literatura, do desporto e do entretenimento.

Mas quando tudo em nós é apropriado, deixamos de ser capazes de distinguir entre um desafio que nos é feito e uma predação das nossas emoções, sentimentos, formas de pensar.

Temos de travar fundo nas dinâmicas de comunicação tóxicas, criar novas e concretizar campos comunicacionais orientados, por um lado, pelo livre arbítrio e por outro, por autoridades identificáveis.

O tempo urge.