Por sábia razão, é do conhecimento popular que não se deve colocar o carro à frente dos bois. Para esclarecer gente mais nova, neste ditado popular, o carro não é sinónimo de automóvel, mas sim de uma plataforma muito resistente assente em duas pesadas rodas (semelhante à vulgar “carroça”) que era utilizada para transportar grandes cargas materiais de forte pendor gravítico, puxada por uma ou mais “juntas de bois” (pares de bois, emparelhados lado a lado), como, por exemplo, as enormes pedras para a construção de monumentos. Uma descrição desse tipo de transporte pode ser encontrada no conhecido romance Memorial do Convento, de José Saramago.
O carro não se põe à frente dos bois, tal como nós humanos não andamos de bicicleta de marcha atrás, não somente por uma simples questão de execução das manobras ao longo do movimento, mas também porque os bois são muito melhores a puxar do que a empurrar.
Vem isto a propósito da discussão pública, que decorreu entre 2 e 25 de junho, de um precioso documento, que apresenta uma proposta para as novas Aprendizagens Essenciais de Matemática do Ensino Básico, constituído por nove partes com exagerada repetição, já que as primeiras 14 páginas são repetidas nove vezes do 1.º ao 9.º ano de escolaridade (como se um professor que ensina o 3.º ano pudesse dedicar-se a um documento autónomo, sem consultar nem ter conhecimento do que é previsto lecionar nos restantes anos do 1.º ciclo, pelo menos!?). Até parece que o Grupo de Trabalho de Matemática (GTM), criado no âmbito do despacho n.º 12530/2018 e alterado pelo despacho n.º 7269/2019, que teve como missão a elaboração de um conjunto de recomendações sobre o ensino, a aprendizagem e a avaliação na disciplina de Matemática, será pago à página!
É do conhecimento geral, mas é sobretudo do conhecimento de quem tem formação em Matemática, como certamente têm todos os membros do referido Grupo de Trabalho, que esta é uma disciplina que se organiza por patamares de conteúdos que devem ser percorridos, sem saltos, para potenciar uma compreensão mais aprofundada dos patamares seguintes. Enquanto nos prédios da urbe dá imenso jeito apanhar um elevador no rés-do-chão e sair no 4.º piso, no edifício matemático, isso não é possível, não há elevador. Porém, é dessa forma estruturada, de ensino bem pensado e melhor cuidado, que se promove o sobejamente propalado “elevador social”.
Dando um exemplo muito simples: à semelhança de não se poder colocar o carro à frente dos bois, também ninguém imagina que se pretenda ensinar a multiplicação sem antes ter tratado da adição.
Ora, as novas Aprendizagens Essenciais de Matemática do Ensino Básico, desobedecendo a esta lógica tão simples, propõem aprendizagens que simplesmente não se podem realizar, comprometendo claramente a compreensão necessária para que as efetivas aprendizagens se realizem.
Observemos alguns exemplos das propostas para o 1.º ciclo:
1. O sistema métrico, que estrutura e organiza a medição das grandezas que se tratam no 1.º ciclo, assenta no sistema decimal. Partindo do metro, define-se o decímetro, que, tal como a palavra indica, significa décima parte do metro, depois o centímetro (centésima do metro) e o milímetro (milésima parte do metro). Mas por que razão há aqui uma ordem? É simplesmente pela mesma razão que propõe que se aprenda primeiro o número 10, depois o 100 e depois o 1000, ou algum iluminado defende que será indiferente aprender primeiro o 100 antes do 10?
Embora na generalidade das ações da prática diária não seja usual efetuar medições em, por exemplo, decímetros, é uma falha grave pretender saltar do metro para o centímetro (com o argumento de que são as unidades de medida mais utilizadas), esquecendo o decímetro, e também o decâmetro, o hectómetro e o quilómetro. Até por uma questão de promover a compreensão do funcionamento da língua portuguesa, nomeadamente no que respeita aos prefixos utilizados por muitos múltiplos e submúltiplos das unidades de medida do sistema métrico, e não só.
2. Se se pretende promover a compreensão do conceito de ângulo, não se pode falar de ângulos sem ter percebido o que é uma semirreta. É que o conceito de ângulo precisa do conceito de semirreta, tal como o pão necessita de farinha. Se um aluno não sabe o que é uma semirreta, jamais poderá saber o que é um ângulo!
É isto promover a aprendizagem?
3. Como será possível compreender a medida da amplitude de um ângulo, como se propõe no 4.º ano a propósito de rosáceas (que verdadeiramente é um objeto matemático que os alunos não sabem o que é!), se os alunos não sabem sequer o que é o grau, como unidade de medida da amplitude dos ângulos? Isto é colocar o carro à frente dos bois!
Imagino que a maioria dos leitores terá frequentado todo o ensino básico ou mesmo todo o ensino secundário. Será que consegue definir o conceito matemático de “rosácea”? Lá que é um objeto bonito, não há dúvida!
4. Sem um tratamento aturado da divisão não inteira, antecedido da adição e da multiplicação de racionais não negativos, que são assuntos exigentes, como será possível que um aluno possa compreender o que é a média de um conjunto de dados numéricos? É simplesmente porque sabe carregar numas teclas da calculadora? Também há de saber carregar no botão de ignição do automóvel dos pais. Será que o deixam?
Se o ensino da Matemática se pudesse desorganizar desta forma, porque não ensinar o que é a raiz quadrada aos alunos do 3.º ano, em consonância com a antecipação para este ano de escolaridade do tema “probabilidades” do 9.º ano? E as potências de expoente natural? São tão naturais: 7x7x7x7, será o quê? Claro: 7 à quarta, está-se mesmo a ver! Um 7 com um 4 pequenino mais elevado à direita. E, já agora, para os mais interessados (porque toda esta demagogia do ensino pela descoberta assenta na defesa da organização do ensino em função dos interesses dos alunos), porque não estimular a procura dos expoentes, ou dito de outro modo, porque não ensinar os logaritmos no 1.º ciclo?
Se fundamentarmos o ensino da Matemática na possibilidade de utilização das calculadoras e demais tecnologia, carregar numas teclas para obter o resultado de uma adição, multiplicação ou divisão sem ter organizado a respetiva aprendizagem convenientemente é muito semelhante a carregar numas teclas para obter um logaritmo ou uma raiz quadrada ou…
Para muitos de nós, a tecnologia é um auxiliar com grandes vantagens, mas não imagino que alguém ligado à educação das crianças defenda que estas tenham acesso indiscriminado a essas supostas “vantagens”, pelo perigo que representam nas primeiras etapas escolares da formação do ser humano.
De forma estruturada, podemos e devemos ajudar as crianças com maiores dificuldades de aprendizagem. De forma desorganizada, sem uma estrutura adequada às respetivas matérias, são sempre os mesmos que beneficiam: os filhos das famílias mais favorecidas.
Na política educativa custa-me muito perceber que a ala parlamentar que tem como bandeira defender as classes mais desfavorecidas, defenda frequentemente o nivelamento por baixo, a falta de exigência e de rigor. Resulta numa clara assunção de que os filhos dos trabalhadores com menores rendimentos são menos inteligentes, menos capazes do que os filhos das classes mais favorecidas, o que é um logro. Recordo que a primeira e mais destacada medida educativa tomada pelo atual Ministro da Educação, a reboque de exigências dos setores políticos à esquerda do PS, foi terminar com as Provas Finais dos 4.º e 6.º anos. Suspeito que em breve venhamos a assistir a eliminações deste tipo noutros níveis do ensino não superior. Obviamente que todas estas opções, supostamente pedagógicas, são também opções políticas.
A distribuição dos talentos, à nascença, não se compagina com a distribuição dos rendimentos dos progenitores, mas a desorganização da educação prejudica claramente os mais frágeis, os que têm famílias com menores suportes escolares.
Primeiro os bois, depois os carros, pois há sequências de aprendizagem que se têm de respeitar!