Os professores sabem muito bem que ensinar Matemática é um assunto muito sério e a generalidade das pessoas reconhece que a disciplina de Matemática é o melhor exemplo de ciência exata e rigorosa. Porém, a proposta agora em discussão para as novas Aprendizagens Essenciais de Matemática do Ensino Básico retoma paradigmas completamente ultrapassados, que lhe limitam fortemente o rigor, vínculo próprio da natureza desta disciplina, que se desenvolve em patamares de crescente complexidade e que sofre imenso, ou mesmo irremediavelmente, com a desestruturação das aprendizagens nos primeiros anos de escolaridade.

Para não alongar o rol de contestação a esta “pérola”, ou melhor, a este “colar de pérolas” do “eduquês”, com dezenas de incongruências, inconsistências e superficialidades (é preciso ter um estômago muito resistente para conseguir ler o documento), vou apenas focar-me em quatro temas constantes das aprendizagens propostas para o 1.º Ciclo: a falta de rigor, o raciocínio probabilístico, a estimativa e a ideologia cívica.

Copiadas com refinamento “eduquês” do Programa de 2007, voltam agora a plasmar o conceito de «quase-dobro», referido por cinco vezes nos documentos do 1.º e 2.º anos.

Todos sabemos o que é um número ser o dobro de outro. O que será um número ser «quase-dobro» de outro? Será que 97 é quase-dobro de 50? E 17 será quase-dobro de 10? Mas, se 18 é o dobro de 9, como é que 17, que é menor que 18, é quase-dobro de 10, que é maior que 9?

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Mas qual será o conceito de «quase-dobro»? Se 13 e 15 são quase-dobros de 7, pois são iguais ao dobro de 7, a menos de uma unidade, então 1 e 3 também serão quase-dobros de 1, ou não? E se 1 é quase-dobro de 1, também 100 há de ser quase-dobro de 100 (1 centena) ou 1000 (1 milhar) será igualmente quase-dobro de 1000.

Ensinada segundo estas orientações, a menina Teresinha, ao saber que o pai ganhava 1000€ e que a mãe também auferia 1000€, dirigiu-se ao pai e disse: “Ó pai, tu tens que contribuir mais para o orçamento familiar, pois ganhas quase o dobro da mãe.”.

“E esta, hein?”, diria o memorável Fernando Pessa.

Todavia, nem a Teresinha nem a professora da Teresinha conseguirão compreender tamanhas alarvidades. Com raciocínios logicamente válidos, o que se poderia deduzir? Que todo o número pode ser quase outro número qualquer? E por que razão os “quase-triplos” são completamente desprezados? E ter-se-ão esquecido dos “quase-metade”? Ou dos “quase-quase”?

Estranho que não se proponha ensinar que um dodecágono regular, por exemplo, é quase uma circunferência! E um icoságono? É que é mesmo quase-quase, como nos carros dos Flintstones! E porque não um undecágono, ou um hexágono, ou um quadrado?

Enfim, esta falta de rigor, esta indefinição dos conceitos, como se em Matemática isso fosse natural, é absolutamente contrária à natureza desta disciplina. Felizmente, a generalidade dos professores de Matemática, que a ensinam diariamente, sabem bem que o rigor é fundamental, mas o Ministério da Educação, por maioria de razão, tem obrigação de o saber.

O segundo assunto que vou abordar é o raciocínio probabilístico, que está contemplado no atual Programa para ser tratado no 9.º ano de escolaridade e aparece nestas novas Aprendizagens Essenciais de Matemática do Ensino Básico para ser iniciado no 3.º e 4.º anos do 1.º Ciclo do Ensino Básico, antecipando escandalosamente em seis anos, e sem qualquer base de conteúdo matemático, um tema tão delicado.

Todos os profissionais de educação e todos os que lidam ou já lidaram de perto com crianças e jovens sabem que as capacidades de raciocínio matemático de crianças de 8 anos não se podem comparar com as capacidades e aptidões de jovens de 14 anos. Há um fosso profundo em termos de capacidades de abstração dos 8 para os 14 anos, para além de uma abissal diferença no domínio dos necessários conhecimentos matemáticos que o assunto exige.

«Destaca-se a valorização do desenvolvimento da literacia estatística e do raciocínio probabilístico desde os primeiros anos.»

Haverá alguém com formação matemática que saiba o que significa «quase de certeza»?

Aposto que não existe! Pois esse extraordinário conceito «quase de certeza» é, por duas vezes, referido no meio do raciocínio probabilístico proposto nas Aprendizagens Essenciais de Matemática do Ensino Básico para o 1.º Ciclo do Ensino Básico.

Certamente, milhões de portugueses já levaram as mãos à cabeça durante um jogo de futebol, ao assistir a um “quase golo” da equipa de que são adeptos.

– Eh pá, foi quase golo – grita o João, de mãos na cabeça.

– Quase golo? Deves estar a ver mal – responde o Vítor.

Isto são comportamentos tremendamente humanos, mas isto não é Matemática, nem sequer quase matemática!

Se entre os professores de Matemática, todos adultos e todos com muitos anos de formação em Matemática, ninguém saberá definir o que se pretende com o conceito «quase de certeza», como será possível que tal seja exposto num documento orientador das aprendizagens das crianças? Como ensinar às crianças um conceito que nem os adultos alcançam?!

Estas trapalhadas vêm diretas do Programa de 2007, que determinava que, nos 3.º e 4.º anos, os alunos «explorem situações aleatórias que envolvam o conceito de acaso e utilizar o vocabulário próprio para as descrever (certo, possível, impossível, provável e improvável).»

Vamos a exemplos concretos. No 4.º ano, as novas AEMEB propõem explorar os conceitos de certo, possível, impossível, provável e improvável (tal e qual como em 2007). «Recorrer a termos do dia-a-dia como “quase de certeza que acontece” para referir um acontecimento provável, “quase de certeza que não acontece” para referir um acontecimento improvável». Como exemplo, propõem a realização de experiências com um conjunto de caixas com bolas. Uma caixa só tem bolas verdes, outra caixa tem bolas vermelhas e outra tem 3 bolas verdes e 1 vermelha. Será que defendem que, ao realizar a experiência de retirar ao acaso uma bola desta última caixa, é improvável que seja de cor vermelha? Ou seja, pretendem que se ensine às nossas crianças que é quase certo não sair bola vermelha de uma caixa com 3 bolas verdes e 1 bola vermelha?

Se um acontecimento com uma probabilidade de 25% for considerado improvável, por que razão a maioria dos humanos, em 2020 e em 2021, se fecharam nas suas casas aterrorizados com um vírus cuja taxa de mortalidade ronda os 2%? Se, em breve, aparecer um novo vírus respiratório (SARS-CoV_quase-dobro2) com uma taxa de mortalidade de 25%, será que o governo de Portugal, influenciado pelas Aprendizagens Essenciais do Ministério da Educação, vai dizer aos portugueses para manterem todas as rotinas habituais, pois, mesmo que 10 milhões venham a contrair o vírus SARS-CoV_quase-dobro2, com uma mortalidade esperada de 2,5 milhões de portugueses, é improvável que os portugueses venham a morrer ou, dito de outro modo, será quase certo que podem fazer a sua vida normal, pois não morrerão!!!

Quem será o doutorado em Matemática que conhece a definição de «improvável» ou a de «provável»? Uma coisa é “conversa de café” e outra, bem diferente, é saber e ensinar Matemática, conhecer o rigor dos respetivos conceitos e ajudar a transmitir os mesmos.

Outro tema que as novas Aprendizagens Essenciais de Matemática do Ensino Básico recuperam do extinto Programa de 2007, é a insistência nas «estimativas». Sabemos que uma estimativa é, nem mais nem menos, uma aproximação numérica de uma quantidade desconhecida. Porém, se não for previamente estabelecida uma margem de erro, uma diferença entre o valor estimado e o valor real, qualquer valor pode ser considerado como uma aproximação de qualquer outro.

Se, no Programa de 2007, os termos associados a “estimativa” ocorriam 42 vezes, agora os autores das novas Aprendizagens Essenciais de Matemática do Ensino Básico excitaram o assunto e referem-no 77 vezes. É obra!

Em 2007, propunha-se «aos alunos que estimem, por exemplo, a quantidade de feijões que estão dentro de um frasco e comparem a estimativa com o número exato dos feijões.»  

Um dia, experimentei fazer esta experiência apresentando um frasco cheio de feijão-frade a um conjunto de 7 adultos, dois dos quais eram professores de Matemática. Os palpites, escritos em segredo num papel, foram tão díspares que toda a gente acabou por se divertir com tal disparate.

Se não estiver estabelecida a margem de erro admissível, como é que se poderá dizer que uma estimativa é boa e outra não o é? Sem margem de erro, são todas boas! É um espetáculo, sem margem de erro, somos todos bons a estimar.

Ora, os conceitos de valor aproximado e de margem de erro estão efetivamente contemplados no atual Programa de Matemática, mas, no 9.º ano, que é quando os alunos já dispõem das ferramentas matemáticas essenciais para o abordar.

Agora, estas novas Aprendizagens Essenciais de Matemática do Ensino Básico propõem, desde o 1.º ano de escolaridade, «proporcionar experiências de estimativa sobre objetos reais presentes no contexto da sala/escola [Exemplo: potes dos lápis, pacotes de leite, embalagens com cubos de encaixe] e promover a discussão sobre a razoabilidade das estimativas indicadas, valorizando progressivamente a construção da autoconfiança dos alunos.»

Ou «estimar o número de objetos de um dado conjunto pelo menos até 100, explicar as suas razões, e verificar a estimativa realizada através de uma contagem organizada.»

Como é que um professor poderá dizer a um aluno que a estimativa não foi boa? Alguém me explica? Valorizar progressivamente a construção da autoconfiança dos alunos com toda e qualquer resposta que seja dada – é isto que se pretende? Transmitir que uma questão Matemática pode ter uma resposta, mas também pode ter outra resposta qualquer – é isto Matemática?

É obrigação do Ministério da Educação promover uma educação inclusiva, uma educação que ajude os que têm mais dificuldades, que os motive, que os faça sentir que também conseguem. Com tantos disparates, os alunos com menor propensão para lidar com números vão sentir-se completamente frustrados e desenvolver a ideia de que não conseguem lá chegar. A construção do conhecimento, sobretudo nas primeiras idades, tem de ser feita por pequenas etapas, alcançáveis e avaliáveis.

Imaginem que um professor coloca numa prova de avaliação algo semelhante a: «Observa com atenção a tangerineira representada ao lado e apresenta uma estimativa para o número de folhas da tangerineira.» Como é que este professor classificaria as respostas? Poderia marcar como resposta errada alguma das respostas apresentadas?

Alguns defensores destas charlatanices não lhe chamam Matemática, mas preferem, eufemisticamente, “educação matemática” ou “literacia matemática”. Estes “vendedores de feira” (sem qualquer desprestígio para quem exerce essa nobre profissão, mas que não se aventura em ser professor de Matemática, tal como eu não me aventuro a ser vendedor de feira) apenas pretendem aproveitar a importância e notoriedade que o termo «Matemática» tem para tentarem atribuir algum valor a estes disparates.

Experimente o leitor colocar-se no papel de um aluno do 3.º ou 4.º ano e fazer uma estimativa do volume do seu roupeiro, ou da estante da sala, ou mesmo da sua sala de aula, quando foi aluno do 1.º Ciclo. Proponho que a margem de erro seja de um litro, que é o mesmo que dizer um decímetro cúbico. Será que consegue promover a sua autoconfiança com tantas respostas erradas? Ensinar Matemática não é “vender banha da cobra, que estica e não dobra”.

Também existe Matemática nos sorteios de “totoloto” ou do “euromilhões”, mas não me parece adequado tentar promover a autoconfiança dos alunos pedindo-lhes para tentarem acertar em todos os números ou, vá lá, em pelo menos todos os números exceto um, da chave que vai ser sorteada no próximo sorteio. Ensinar Matemática às crianças do 1.º Ciclo não é treiná-las a jogar na lotaria.

Finalmente, vou agora debruçar-me sobre uma questão que pode, para alguns, ser considerada “politicamente correta”, mas que, em meu entender, não pode ser incluída num documento orientador do ensino da Matemática, por se tratar de uma questão de ideologia, apropriada para ser tratada pela educação familiar, embora, porventura, se lhe possa reconhecer algum âmbito cívico.

Vejam o que é proposto como um dos objetivos da aprendizagem: «Comparar diferentes formas de poupar, reconhecendo a importância da poupança.»

Discutir com toda a turma a distinção entre gastar e poupar, a partir da análise de situações reais [Exemplo: Pretendo comprar um casaco que custava 60€. Ao abrir a época dos saldos, o casaco passou a custar 30€. Ao comprar este casaco, estou a gastar ou a poupar? Mesmo que não precise do casaco, devo comprá-lo a este preço? Justifica].

Não deve ser competência do professor de Matemática, nem, na verdade, de qualquer docente, incutir nos seus alunos os méritos ou deméritos do consumo. Isso é tarefa da família e, quando muito, da sociedade em geral, mas não de ensino programado pelo Ministério da Educação.

Com que autoridade um professor se apresenta perante os respetivos alunos com um casaco novo? Será que tinha necessidade de o comprar? Será que o preço que pagou pelo casaco foi adequado? Não teria outros casacos para vestir? Não poderia ter entregue esse dinheiro a uma instituição de ajuda aos mais necessitados?

Não deveríamos ir todos a pé para a escola, descalços ou de alpercatas e com a camisola esburacada ou remendada, pois ainda aquece o suficiente para não se passar frio? Obviamente que não é a utilização de uma camisola remendada ou esburacada, que era frequente em muitas crianças no Portugal de há um século, que as impede de aprender Matemática, mas, se isso acontecer nos dias que correm, certamente que as escolas se vão preocupar com aquela criança, pois a evolução da economia e da tecnologia permitiu que a generalidade da população tenha fácil acesso a camisolas, sem necessidade de frequentar a escola com camisolas esburacadas. A menos que seja fashion!

Algum professor tem o direito de se imiscuir nos gastos que os pais do Pedrinho fazem?

Professor: “Ó menino Pedrinho, os seus pais compraram um automóvel novo. Acha bem? Vamos discutir esse assunto com toda a turma.”.

Sinceramente…