Nos últimos 20 anos entraram 5 novos partidos no parlamento: Bloco de Esquerda, PAN, Livre, Chega e Iniciativa Liberal. O que têm em comum? Todos obtiveram os seus primeiros lugares parlamentares através do círculo eleitoral de Lisboa. O Bloco de Esquerda conseguiu, inclusive, 2 deputados em 1999, ambos na capital, na sua primeira presença no parlamento. Entretanto, ao longo dos anos, outros partidos ficaram pelo caminho, por terem uma base eleitoral mais dispersa, ou sobretudo rural. Tais como o PDR, em 2015, que obteve 60.998 votos, dos quais 50.749 fora do círculo eleitoral de Lisboa, correspondendo a mais 18 mil votos do que o Livre em 2019 nas mesmas regiões. O PDR não elegeu nenhum deputado (vendo pela positiva, livrámo-nos do populismo e demagogia de Marinho e Pinto), o Livre elegeu um em 2019. Invariavelmente, estes partidos pequenos chocam com a falta de equilíbrio e desproporcionalidade dos círculos eleitorais, bem como com as limitações do Método de Hondt que privilegia partidos maiores para atribuição de deputados.

Nas eleições de 6 de outubro, o círculo eleitoral de Lisboa representou 1.921.189 eleitores (bem, é o que dizem os cadernos eleitorais, que têm o condão de ressuscitar eleitores…), elegendo por isso 48 deputados, um número proporcional ao seu número de eleitores. Este círculo eleitoral elege tantos eleitores como a soma dos círculos de Beja, Bragança, Castelo Branco, Évora, Guarda, Portalegre, Viana do Castelo, Vila Real, Viseu, Madeira e Açores, que totalizam 2.114.420 eleitores. Contudo, o círculo de Lisboa elegeu em 2019 deputados de nove partidos (ou dez, contando com o PEV), enquanto as restantes regiões referidas só elegeram deputados de três partidos. Mais do que a diferença de peso dos grandes partidos em número de votos (PS e PSD representam 62% em Lisboa e 72% nas outras 11 regiões mencionadas), esta disparidade deve-se a 218 mil votos (22%) que não elegeram qualquer deputado nestas regiões mais pequenas, comparando com apenas 46 mil votos (4%) no círculo de Lisboa atribuídos a partidos que não alcançaram assento parlamentar. Por exemplo, o CDS-PP com 49 mil votos elegeu dois deputados em Lisboa, mas os 51 mil votos nestes 11 círculos eleitorais mais pequenos não lhe permitiu eleger qualquer deputado.

Adicionalmente, verificamos que há círculos eleitorais como Bragança (3 mandatos) e Vila Real (elege 5 deputados) que desde 2009, em quatro eleições legislativas consecutivas, distribuem o mesmo número de mandatos pelos mesmos partidos, apesar das notórias variações nas percentagens. O PSD teve 52% de votação em Bragança em 2011, elegendo 2 deputados, e obteve 41% em 2019, mas elegeu o mesmo número de deputados. A queda de 11 pontos percentuais não foi suficiente para ter qualquer impacto na atribuição de mandatos. Já em Vila Real, o resultado de 39% do PSD em 2019 correspondeu aos mesmos 3 deputados da votação de 51% obtida em 2011. Foram 5 deputados eleitos em Vila Real por dois partidos que representam apenas 76% dos eleitores. E se formos ao círculo eleitoral mais pequeno do país, o de Portalegre, os resultados são ainda mais preocupantes. Foram eleitos 2 deputados, ambos pelo PS que obteve 45% dos votos, o que implica que 55% dos eleitores desta região não ficaram representados por deputados. Objetivamente, o voto dos eleitores do interior vale pouco na composição final do parlamento. Pelos vistos, há eleitores de primeira e de segunda.

E o que dizer de um Presidente da República que indigita um governo e realiza audiências com todos os partidos com assento parlamentar antes sequer de serem atribuídos os quatro lugares de deputados dos círculos eleitorais da emigração? Uma falta de sentido de Estado (apesar da justificação relativa ao Conselho Europeu), e uma desconsideração pelo milhão e meio de eleitores que decidiram emigrar em busca de melhores condições de vida. Imagine-se, por hipótese, que o Aliança ou um dos pequenos partidos que não elegeram deputados no território nacional elegeria um deputado nos círculos fora de Portugal. Dir-me-ão que é matematicamente possível, mas realisticamente impossível. É verdade… Mas essa é uma verdade para os jornais e para o comum dos eleitores, não deve ser assumida como verdade oficial pela principal figura da República que representa todos os portugueses. Os nossos emigrantes merecem mais.

Precisamos de repensar o que representam os nossos deputados. O atual sistema pressupõe que cada deputado representa um conjunto de eleitores de uma região. Na verdade, a maioria dos eleitores não sabe em quem vota, conhece pouco mais do que o cabeça de lista do seu círculo eleitoral, e os critérios usados para escolha do partido seguem uma perceção e avaliação maioritariamente nacional, muito ancorada nos seus líderes, que são aqueles que têm mais tempo de antena nos órgãos de comunicado social. Elegemos 230 deputados, grande parte deles anónimos e que assim continuarão quatro anos depois. Um modelo que não serve o eleitor, mas que se serve dele para preservar o centralismo e o poder dos partidos, sobretudo dos maiores, afastando, cada vez mais, quem elege de quem é eleito.

Olhando para os programas eleitorais, parece evidente que a vontade de mudar esta situação é escassa. A maioria dos programas refere como objetivo a reforma do sistema eleitoral, mas os respetivos textos são de tal forma superficiais que evidenciam falta de compromisso. O Partido Socialista refere como objetivo “reformar o sistema eleitoral para a Assembleia da República, introduzindo círculos uninominais, sem prejuízo da adoção de mecanismos que garantam a proporcionalidade da representação partidária, promovendo o reforço da personalização dos mandatos e da responsabilização dos eleitos, sem qualquer prejuízo do pluralismo”, enquanto o principal partido da oposição ainda é mais sucinto, compromete-se a “alterar a forma de eleição de deputados pela reconfiguração dos círculos eleitorais”. São propostas colocadas nos programas, como tantas outras, que são úteis para criar volume, mas carecem de substância. São toques de maquilhagem naquilo que são programas eleitorais cada vez menos convincentes e vagos.

José Ribeiro Castro, ex-líder do CDS-PP, tem-se debatido muito ao longo dos anos por uma desejável e necessária reforma do sistema eleitoral. Liderou uma proposta meritória que foi entregue no Parlamento no início do ano, com sete mil assinaturas, que sugere e detalha a criação de círculos uninominais e círculos plurinominais. Ainda que a formulação seja diferente, os objetivos são equivalentes à proposta da Iniciativa Liberal que propõe 150 círculos uninominais e um círculo de compensação nacional de 80 deputados. Ambas as propostas partilham da ideia de aproximar os eleitores dos deputados, elegendo-os através de círculos uninominais, e complementando com listas de deputados nacionais. Estas alterações permitiriam ainda uma melhor representação dos votos em número de mandatos, melhorando a sua proporcionalidade. Algumas opções implicam uma revisão constitucional, outras não. O importante é iniciar uma discussão séria e criar grupos de trabalho heterogéneos e multidisciplinares que agreguem tanto os partidos, como representantes locais e até outras figuras relevantes fora da política.

Mas não tenhamos ilusões. Uma reforma do sistema eleitoral, nomeadamente dos círculos eleitorais, não vai resolver o problema da abstenção. A maioria dos abstencionistas está afastada da política e sem confiança em quem nos representa. Mas, pelo menos, uma reforma aproximaria a política dos não abstencionistas, dando-lhes a esperança de que ainda vale a pena votar, o que, por si só, já é bastante louvável. Se, adicionalmente, ajudar a abrandar a gradual queda da base eleitoral e se permitir a composição de um parlamento mais representativo, já cumpriu o seu propósito.

Infelizmente não sou um otimista sobre esta matéria. Daqui a quatro anos este artigo manter-se-á atual e, provavelmente, reforçado por uma clivagem ainda maior entre os grandes círculos eleitorais e o restante país. Os maiores partidos não têm interesse em mudar por serem os principais beneficiados, e os outros, desde o momento em que asseguram presença no parlamento, perdem o incentivo de alterar um sistema que tanto os prejudicou, mas que agora representa para eles uma desejável barreira à entrada de outras forças partidárias que poderiam no futuro ameaçar o seu lugar. É uma questão de decidirmos se queremos que o poder esteja do lado dos partidos, ou do lado dos eleitores. Eu voto na segunda hipótese.

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