Sempre que passo à porta da minha repartição de Finanças um pouco antes das 9 horas da manhã num dia de semana o cenário é, invariavelmente, o mesmo: uma longa fila na rua, com pessoas de todas as idades dispostas ao longo do passeio marcando a sua vez enquanto aguardam pela ansiada abertura de portas para tentarem resolver os seus problemas. Este cenário terceiro mundista não é, infelizmente, exclusivo dos serviços de Finanças. Pelo contrário: ilustra e simboliza de forma eloquente o estado de quase colapso (em alguns casos mesmo de colapso) a que chegaram muitos serviços públicos em Portugal.
Importa assinalar antes de mais que esta triste situação constitui ainda assim um progresso face ao longo período durante o qual, incrivelmente, não houve sequer atendimento presencial sem marcação nestes serviços. Mas, da mesma forma que os portugueses se habituaram a aceitar que tratar de um assunto nas Finanças exija ganhar um lugar numa longa fila em plena rua, também se habituaram à crónica falta de professores nas escolas estatais, a períodos de espera muito para além do razoável e clinicamente aconselhável no SNS, a atrasos infindáveis no sistema judicial, a transportes públicos sobrelotados e que não respeitam horários, ao lixo acumulado nas ruas e a muitos outros sintomas da desorganização do Estado e do colapso dos seus serviços tanto a nível central como local.
A tudo isto juntam-se as frequentes greves, naturalmente intensificadas agora que a “direita” está no poder e a (aparente) paz social dos tempos da geringonça com sindicatos institucionalmente dóceis e colaborantes é cada vez mais uma memória distante. A este respeito, as mortes alegadamente provocadas por falhas no atendimento do INEM devido à greve dos técnicos de emergência são um acontecimento particularmente grave mas não especialmente surpreendente dado o estado a que chegaram os serviços públicos em Portugal.
Esse colapso dos serviços públicos não acontece, no entanto, por acaso. Ele é o resultado lógico e expectável de décadas de políticas públicas socialistas que acumularam erros em cima de erros gerando um Estado pesado, ineficiente e frequentemente desligado das reais necessidades dos cidadãos. Medidas disparatadas como o novo passe ferroviário nacional — ao subsidiar a procura num sector que enfrenta lacunas gravíssimas e crescentes na oferta — só vêm agravar os problemas mas acima de tudo ignoram a necessidade urgente de repensar o Estado e cortar drasticamente com as políticas públicas fracassadas das últimas décadas.
Se a mesma lógica estatista, rentista e anti-concorrencial fosse aplicada à produção e venda de pão teríamos inevitavelmente padarias com prateleiras vazias e longas filas de espera para tentar fazer uso de senhas de racionamento. Portugal precisa de novas políticas públicas que cortem com os monopólios estatais e com o rentismo em múltiplos sectores protegidos pelo Estado e promovam seriamente a oferta de serviços públicos com maior abrangência e concorrência. O último período em que houve em Portugal algumas – ainda assim tímidas – tentativas sérias de reformas neste domínio foi durante a governação de Pedro Passos Coelho mas aí as prioridades eram compreensivelmente outras dada a situação de emergência orçamental.
Desde então, não houve mais qualquer ímpeto reformista e o descalabro que agora experienciamos quotidianamente é o corolário lógico disso mesmo. Aos problemas estruturais acumulados resultado de décadas de erros de palmatória nas políticas públicas acresce a prioridade política dada a satisfazer reivindicações sectoriais e corporativas – o que logicamente abre a porta e incentiva novas reivindicações e mais protestos. De facto estamos mesmo perante um efeito bola de neve de reivindicações que só tenderá a agravar-se [https://rr.sapo.pt/noticia/politica/2024/10/02/costa-lancou-subsidios-de-risco-montenegro-colhe-proveitos-e-protestos/396010/]. Atendendo a reivindicações de forma casuística resolvem-se problemas políticos no curto prazo relativamente aos grupos sectoriais mais vocais mas simultaneamente sinaliza-se para todos os outros grupos que o protesto e a disrupção compensam.
Além dos efeitos perniciosos sobre as contas públicas, este tipo de governação inviabiliza qualquer reforma racional da estrutura remuneratória no Estado e, assim, agrava ainda mais os problemas de gestão pública. A situação política é delicada mas ou o governo AD decide abandonar uma lógica de gestão corrente e enfrentar seriamente os problemas estruturais do Estado ou as consequências serão, num prazo não muito distante, graves. Não só pelo colapso dos serviços públicos que já vai afetando a generalidade dos portugueses mas pela insatisfação e revolta que inevitavelmente a consciência desse colapso gerará contra o próprio sistema político.