O Concílio Vaticano II teve, graças a Deus, um grande impacto na vida da Igreja católica, nomeadamente na sua liturgia. É comum dizer-se que a celebração da Missa de frente para o povo, bem como o uso das línguas vernáculas, em substituição do latim, são reformas ditas conciliares, mas a verdade é que nem tudo o que se diz ser conciliar consta na constituição Sacrosanctum Concilium (SC), o texto do Concílio Vaticano II sobre a liturgia. Paradoxalmente, algumas das comummente ditas reformas conciliares contradizem até a letra e o espírito desta constituição.
A SC, que foi a primeira constituição a ser aprovada pelos padres conciliares, mais do que normativa é programática: indica os critérios a ter em conta na adaptação dos ritos “às necessidades do nosso tempo” (SC, 1). Assim sendo, estabelece que a “reforma e incremento da Liturgia” deveria “fomentar a vida cristã”, bem como “promover (…) a união de todos os crentes em Cristo” (id.).
Infelizmente, não consta que a reforma litúrgica efectuada tenha suscitado uma maior participação dos católicos: no pós-concilio verificou-se, em muitos países, uma drástica diminuição dos índices da prática dominical. Também não parece que se tenha logrado “a união de todos os crentes em Cristo”, porque a questão litúrgica foi, e continua a ser, um factor de desunião dentro da Igreja, que sofre a tensão entre os defensores de uma nova liturgia e os mais acérrimos tradicionalistas.
Ao contrário de quem pretende impor uma uniformidade litúrgica universal, outro é o espírito do Concílio Vaticano II: “não é desejo da Igreja impor, nem mesmo na liturgia, a não ser quando está em causa a fé e o bem de toda a comunidade, uma forma única e rígida, mas respeitar e procurar desenvolver as qualidades e dotes de espírito das várias raças e povos” (SC, 37). O princípio conciliar é, portanto, o da comunhão eclesial na unidade da fé, não na uniformidade de um só rito católico, mas na sua pluralidade. Embora se reconheça a predominância do “rito romano” (SC, 3), estabelece-se também que todos os ritos são “iguais em direito e honra” (SC, 4).
Um dos mais salutares princípios conciliares é, sem dúvida, o de “facilitar uma participação piedosa e activa dos fiéis” (SC, 50). Curiosamente, não há nenhuma referência, explícita ou implícita, à celebração de frente para o povo, pelo que se pode afirmar que esta modalidade não é, em sentido próprio, conciliar e, portanto, a sua defesa não pode ser feita em nome do Vaticano II, nem a sua reforma tida por anti-conciliar. Se é verdade que o Concílio promove a participação “activa” dos fiéis, em primeiro lugar pretende que essa participação seja “piedosa”: as celebrações litúrgicas têm como finalidade prioritária o louvor a Deus e a salvação das almas, como o objectivo principal do acto médico é a cura do doente, não a sua participação no tratamento. É chamativo que tantos fiéis, sobretudo jovens, procurem nos antigos ritos a transcendência e sacralidade que não encontram na moderna liturgia.
É um lugar-comum afirmar que, graças ao Concílio Vaticano II, o latim foi substituído pelas línguas vernáculas nas celebrações católicas. Mas esta afirmação não só não consta no texto da SC, como contradiz esta constituição em várias das suas determinações.
Com efeito, o Concílio estabelece, como princípio geral, que o latim é a língua oficial da liturgia católica: “deve conservar-se o uso do latim nos ritos latinos” (SC, 36). Esta regra é reiterada em relação à Eucaristia, não apenas em relação ao celebrante, mas também aos fiéis leigos: “tomem-se as providências para que os fiéis possam rezar ou cantar, mesmo em latim, as partes do Ordinário da missa que lhes competem” (SC, 54). Em relação ao ofício divino, oração pública da Igreja a que estão obrigados todos os clérigos, estabelece-se que, “conforme à tradição secular do rito latino, a língua a usar no Ofício divino é o latim” (SC, 101). Também se prescreve a revisão do saltério, mas com uma indicação específica: a de que se procure “respeitar a língua latina cristã, o seu uso litúrgico, mesmo no canto, e toda a tradição da Igreja latina” (SC, 92). Por último, “a Igreja reconhece como canto próprio da liturgia romana o canto gregoriano; terá este, por isso, na acção litúrgica, em igualdade de circunstâncias, o primeiro lugar” (SC, 116). Sendo o canto gregoriano em latim, fica assim reforçada a insistência do Concílio no que respeita ao uso habitual, na liturgia católica, desta língua.
Que dizer, então, das línguas vernáculas? Não é verdade que o Vaticano II autorizou o seu uso na liturgia? Com certeza, não em substituição do latim, mas supletivamente. É significativo que, ao mesmo tempo que se afirma que “deve conservar-se o uso do latim nos ritos latinos”, também se diga que “poderá conceder-se à língua vernácula lugar mais amplo, especialmente nas leituras e admonições, em algumas orações e cantos” (SC, 36). Enquanto o verbo empregue em relação ao uso do latim, ‘deve’, expressa uma obrigação; o verbo que legitima o uso das línguas vernáculas, ‘poderá’, refere uma mera possibilidade. O carácter restritivo desta autorização é manifesto pelo facto de as decisões “acerca do uso e extensão da língua vernácula” deverem ser “aprovadas ou confirmadas pela Sé Apostólica” (id.).
Ao contrário do que muitos crêem, o Concílio Vaticano II não fez nenhuma reforma litúrgica, pois limitou-se a sugerir directrizes a ter em conta na adaptação dos ritos católicos “às necessidades do nosso tempo” (SC, 1). Muitas das inovações introduzidas foram-no, pois, à margem ou contra os ensinamentos conciliares e, com frequência, degeneraram em abusos, não apenas contrários à tradição, mas também à letra e ao espírito do Concílio.
A reforma litúrgica, de que a Igreja urgentemente precisa, deve reconciliar a tradição com os ensinamentos conciliares. O Concílio não se propôs criar uma nova liturgia, mas rever os seus ritos “no espírito da sã tradição” (SC, 4): “Para conservar a sã tradição e abrir ao mesmo tempo o caminho a um progresso legítimo, faça-se uma acurada investigação teológica, histórica e pastoral acerca de cada uma das partes da Liturgia que devem ser revistas” (SC, 23). Ao contrário do que muitas vezes aconteceu, os padres conciliares pretendiam uma evolução na continuidade: “não se introduzam inovações, a não ser que uma utilidade autêntica e certa da Igreja o exija, e com a preocupação de que as novas formas surjam das já existentes” (id.).
A questão litúrgica não se reduz à falaciosa contraposição entre tradição e modernidade. Nem a tradição, nem o Concílio, são dispensáveis. A sua aparente oposição resolve-se pela aplicação, sem experimentalismos, da letra e do espírito do Vaticano II, porque a constituição Sacrosanctum Concilium exige, precisamente, que o “progresso legítimo” seja realizado “no espírito da sã tradição”.