Superada a azáfama do Natal, fui encontrar o Cónego Jeremias à lareira da casa sacerdotal onde, há já uns anos, vive na companhia de uns quantos padres também jubilados, que as Irmãzinhas de Matusalém cuidam com esmerada dedicação.
– Santo Natal, Senhor Cónego Jeremias! Como tem passado?
– O Natal já foi, mas como ainda estamos na oitava, aceito e retribuo os seus votos. Imagino que teve muito trabalho pastoral nestes últimos tempos!
– Sem dúvida, Senhor Cónego, mas ainda bem: felizmente, há quem aproveite estas festas para se reconciliar com Deus através do Sacramento da Penitência, para o poder receber, pelo Natal e Ano Novo, na sagrada comunhão.
– Claro: sem confissão, não pode haver comunhão! E fez o presépio?
– Com certeza, como todos os anos! Até a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, numa intervenção do ano passado e que foi viral, aconselhou que se fizesse o presépio, explicando o seu sentido humanista e universal. São bem melhores do que as insípidas decorações geométricas – bolas, triângulos, círculos, trapézios e o diabo a quatro! – que mais parecem anúncios de um espectáculo de circo!
– De facto, o bom gosto não impera nas laicas decorações natalícias!
– E que me diz o Senhor Cónego das últimas notícias do nosso país?
– Pois olhe, como António Costa tinha dito ‘habituem-se’, eu estava a tentar habituar-me … e não é que, afinal, caiu com estrondo, provocando a queda do Governo, a dissolução do Parlamento e novas eleições legislativas?!
– Ficou muito surpreendido com a demissão do chefe do Governo?
– Se quer que lhe diga, já estava habituado a que não fizesse nada – em 8 anos de governação, nem sequer decidiu a localização do novo aeroporto! – o que é muito de agradecer. Imagine que o homem fazia coisas: estávamos perdidos!
– Porque diz que não fez nada?!
– Pois olhe, cada vez há mais sem-abrigo em Lisboa, o Serviço Nacional de Saúde está pelas ruas da amargura: há hospitais estatais onde os doentes urgentes têm de esperar mais de dez horas para serem atendidos! A educação também está uma desgraça, como o PISA veio confirmar. Aliás, o Ministério está mais interessado nas casas de banho e em implementar a ideologia de género, do que fazer com que os professores tenham salários dignos e os alunos saibam Português, História e Matemática.
– E a Justiça?
– Pior ainda! O primeiro-ministro demissionário gosta muito de dizer que é preciso deixar a justiça funcionar e foi precisamente isso que não fez! Repare: vai agora fazer dez anos que o anterior primeiro-ministro socialista esteve preso, perto de um ano, e ainda não foi julgado sequer!!! Das duas uma: ou é inocente e, então, responsabilizem quem injustamente o deteve durante tantos meses; ou é culpado e, como tal, condenem-no. Mas, claro, como o actual primeiro-ministro também é socialista e foi ministro dele, o mais provável é que os alegados crimes prescrevam e o dito fique impune.
– A propósito de questões judiciais, este ano foi difícil para a Igreja, por causa dos casos de pedofilia …
– Sim, foi de facto muito triste, embora a Igreja já esteja a fazer tudo o que pode e deve fazer nesta matéria. Mas o Estado nem sequer averiguou os casos de abusos nas escolas, nas outras religiões, nas associações desportivas e juvenis e nas famílias, que é onde são mais frequentes. O Patriarca de Lisboa tem insistido na necessidade de que todas as vítimas sejam ajudadas, não apenas a minoria que foi abusada por eclesiásticos.
– Mas estas não foram poucas: o relatório da Comissão Independente estimou em 4815 as vítimas de abusos por parte de responsáveis da Igreja católica portuguesa…
– Disse que estimou e disse bem, porque ficou patente a inconsistência dos resultados apresentados, com pompa e circunstância, pela Comissão dita Independente que, para cerca de uma meia centena de casos averiguados, extrapolou o total para 4815 abusos! Note: um número, que mais não é do que uma grosseira estimativa, desce ao pormenor das unidades, como se fosse rigoroso, ou científico! Isto, não só é ridículo, como é manifestamente má-fé! Uma vergonha, em termos éticos e técnicos, se se tiver em conta que receberam muitos milhares de euros por um trabalho tão mal feito. Não estranha, por isso, que ninguém, da Comissão, tenha transitado para o grupo que agora acompanha as vítimas.
– Porque entende que o relatório da Comissão Independente não é objectivo?
– Porque depois as dioceses esclareceram que bastantes dos casos ‘supostos’ não correspondem à realidade. Nesse relatório eram referidos padres que nunca foram pedófilos, ou que já não eram padres, ou que já tinham morrido, ou que, depois de investigados, foram declarados inocentes, ou, até, que nunca existiram!
– Sim, mas repare: no Expresso de 3-3-2023, o jornalista Hugo Franco noticiou que “o pedopsiquiatra Pedro Strecht entregou à Conferência Episcopal Portuguesa uma lista de cem padres suspeitos no activo.”
– É verdade, mas dez meses depois, ainda não há nenhum, que se saiba, que tenha sido julgado, o que é lamentável, não apenas pelo sofrimento que supõe para as vítimas, mas também para os inocentes sobre os quais recai esta infame suspeita! Espero bem que se faça justiça e depressa, porque um só abuso é já um crime horrível, que não pode ficar impune. Não quero crer que alguém esteja a encobrir estes casos, mas se houver quem o esteja a fazer, não é decididamente a Igreja, nem que esta gravíssima acusação não tenha fundamento e esses “cem padres suspeitos no activo” não existam, ou não sejam suspeitos de coisa nenhuma, em cujo caso essa acusação seria uma calúnia.
– Para além desta tão triste recordação, que mais lamenta de 2023?
– A lei que despenalizou a eutanásia e o suicídio assistido, claro! Era provável que o Partido Socialista voltasse à carga com esta proposta anticristã que, não só foi aprovada pelos deputados do partido no Governo, como também pelo Bloco de Esquerda, pelo PAN, pela Iniciativa Liberal e por seis deputados do PSD. Só votaram contra o Partido Comunista Português e o Chega. Surpreendente foi a atitude do Presidente da República que, nas campanhas eleitorais prévias à sua eleição e reeleição presidencial nunca disse que é a favor da eutanásia, como se viu que afinal é, ao promulgar essa lei inconstitucional quando, na opinião de vários constitucionalistas, podia e devia não o ter feito. Por isso, é de justiça reconhecer que essa lei é da autoria de Isabel Moreira e de Marcelo Rebelo de Sousa que, promulgando-a, a fez sua.
– Quer dar um palpite sobre as próximas eleições legislativas?
– Meu caro, sobre isso não falo, mas faço minhas as palavras de um conhecido futebolista a quem, tendo-lhe sido pedida a previsão do resultado de uma competição, respondeu sabiamente: prognósticos, só no fim do jogo!
– E quais são as suas melhores recordações do ano 2023?
– Sem dúvida, a Jornada Mundial da Juventude! Foram dias inesquecíveis, não apenas pela presença do Santo Padre, mas também de tantos milhares de raparigas e rapazes – cerca de um milhão e meio! – que inundaram Lisboa com a sua fé e a sua alegria! Esses jovens, transbordantes de entusiasmo e firmes nas suas convicções cristãs, são a esperança da Igreja e do mundo!