A quem interessa?  Essa é a pergunta que se deve fazer perante uma política pública. E também em face de uma arena social com interesses políticos. A quem interessa a polarização social? Existe um conluio entre atores políticos particulares e grupos específicos da sociedade civil para produzir uma polarização social? Quem pretende que o país esteja socializado para a polarização social? Quem pretende que todos e qualquer um de nós seja obrigado a tomar partido e, portanto, que a polarização social cresça? Responder a estas perguntas é perceber e avaliar o momentum de corrupção do regime político em que nos encontramos. Após o processo começar, os mecanismos de prevenção serão já tardios.

Certamente que se pode fazer uma história dos antecedentes e de todos aqueles que quiseram criar a polarização, mas que não conseguiram senão evidenciar, as mais das vezes, apenas a radicalização de uns poucos. A criação do partido Chega em abril de 2019 é um ponto alto de tal percurso, mas o atingir de 50 deputados em março de 2024 é já a evidência de tal polarização. E essa evidência é já um meio de caminho cuja cronologia mais próxima terá começado com a queda do governo e com o conflito entre poder político e poder judicial. Atentar nessa cronologia possibilita que amanhã, quando olharmos para trás, possamos perceber como chegámos aqui. Ainda que a pergunta principal é a quem interessa e porquê? E o partido Chega não é a resposta única, porventura nem é a principal, sendo mais um sintoma do apodrecimento das instituições e, em última análise, do mecanismo de sobrevivência das mesmas, por parte de quem as tem como reféns. Apresentemos, então, alguns elementos para uma cronologia:

1. Retirar legitimidade ao poder judicial e, especificamente, ao Ministério Público é a corrosão que faltava no regime, perante parlamentos cada vez mais fracos que encomendam leis em sistema outsourcing (ao mesmo tempo que recusam legislar o lobbying) e que tinham já sido grandemente relativizados pela governação por decreto. Acresce a ausência de quase qualquer outro escrutínio, como o da comunicação social, sendo o caso da Media Capital e a greve geral dos jornalistas a 14 de março (com a ‘liberdade editorial’ como um dos slogans de cartaz) a confirmação de tal ausência. O último escrutinador a abater era o judicial e a querela entre Ministério Público e Governo desde novembro de 2023 funcionaram bem para esse fim. A divisão dentro do poder judicial, entre o Ministério Público e os juízes de instrução, veio ajudar e é até a comunicação social que sentencia, agora em abril, a perda de poder do Ministério Público ao acusar que existiu ‘abuso do poder judicial’.

2. No dia 7 de janeiro, Pedro Costa decide ir para a frente do Parlamento em vigília solitária de protesto em relação ao suplemento atribuído à Polícia Judiciária pelo outro Costa, Primeiro-Ministro. No 5.º dia tinha pelo menos oito dezenas de colegas a seu lado presencialmente e o apoio de milhares de profissionais da PSP, GNR e Guardas Prisionais. As manifestações de 24 de janeiro em Lisboa e 31 de janeiro no Porto juntaram milhares de polícias. A 22 de fevereiro é anunciado que militares põem a hipótese de se manifestarem pela diferença salarial entre polícias e militares. Agora um ‘movimento inorgânico’ de polícias e militares (GNR) marca manifestação em frente ao Parlamento para o dia 25 de abril. O suplemento atribuído à Polícia Judiciária a 27 de novembro foi de facto um bom rastilho. Quaisquer que tenham sido as intenções do anterior Primeiro-Ministro, o resultado é a divisão nas forças de segurança: um dos elementos do manual da subversão do Estado.

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3. A 3 de fevereiro estava prevista uma manifestação, no Martim Moniz, da extrema-direita contra a ‘islamização da Europa’ mas, tendo sido proibida pelo Tribunal Administrativo da Lisboa, foi levada a cabo entre o Largo Camões e a Praça do Município, reunindo cerca de 200 pessoas. Esta manifestação teve uma contra-manifestação, de grupos anti-racistas e em que se gritou ‘viva o 25 de abril’. No dia 2 de abril, no Porto, essa confrontação, ainda a um nível ‘ritual’, conseguia produzir-se: duas manifestações antagónicas a 350 metros uma da outra funcionaram como um teste social, tomando as grandes cidades como palco. Estes foram dois bons exercícios para produções maiores.

4. A 8 de Abril, o lançamento por Pedro Passos Coelho do livro “Identidade e família – Entre a Consciência da Tradição e as Exigências da Modernidade”, coordenado por Bagão Felix, Paulo Otero e outros, traz a polarização para um espaço em que ainda não estava a 100% instalada: a questão dos valores culturais e seus direitos. Claro que os direitos culturais e os desafios que estes lançam aos direitos civis e sociais e, portanto, à democracia, são conhecidos, ainda que pouco discutidos (como tudo em Portugal). Alguns dos temas da diferença na igualdade e igualdade na diferença têm vindo a crescer em interesse, relevância e alguma conflitualidade social na última década: a questão de género; a de raça/etnia; a da nacionalidade, a da religiosidade, a da funcionalidade… A cultura é como um armário que, por vezes, precisa de ser rearrumado implicando reajustes entre vontades e representação. Em setores muitos específicos já se tinha criado uma luta latente entre ‘imperialismo sobre a diferença’ e ‘imperialismo da diferença’, mas tal não tinha (ainda) ganho espaço de polarização nacional. O livro Identidade e Família vem ocupar esse espaço tendo tal sido previsto ou não pelos autores e a manifestação à porta da livraria com bandeiras LGBTQIA+ e símbolos do anarquismo evidenciam tal polarização.

5. A 18 de Abril, de um inquérito lançado pelo ISCSP/CAPP publicita-se em parangonas no jornal parceiro da investigação que “47% apoiariam “um líder forte” sem eleições”. É como quem pergunta, quem é que é a favor de um golpe de estado e descobre-se que afinal 50% dos portugueses até alinhavam!

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É necessária uma reflexão sobre a polarização e seus objetivos. Muitos estão a embarcar neste navio não percebendo da loucura da viagem. A agenda do dia-a-dia das notícias e das acções leva a isso. Mas há manipuladores com agendas de médio e longo prazo e manipuladores a quem interessa simplesmente o apodrecimento das instituições pois vivem de rendas que derivam da captura desses portais de empregos, dinheiro e poder.

Quais são os objectos em que se centram a polarização? Por um lado, a divisão vale por si. Principalmente, a divisão ao nível dos órgãos de soberania, desde logo entre poder judicial e poder político, mas também a divisão ao nível dos deputados. A ideia de que o país está ingovernável é ótima para quem defende a polarização. Depois, claro, a divisão ao nível das forças de segurança. O ideal é que ao receio constante de não termos governo porventura amanhã, se junte a insegurança. Termos polícias divididos entre si e contra o governo e, mais que isso, termos militares contra o governo é já um cenário de verdadeira comemoração do 25 de Abril! Ao receio de ingovernabilidade e de divisão nos órgãos de soberania e de segurança, acresce a insegurança existencial, quer do futuro, pelo facto dos filhos não terem professores ou uma escola pública adequada, quer mesmo do presente, ao precisar de um médico e não ter. Imaginar que se pode morrer de uma doença e que a consulta da mesma é só daqui a seis meses, ajuda à revolta e à predisposição para aceitar um qualquer líder forte. Se nada disto for suficiente, o medo efetivo em relação ao ‘Outro’, o imigrante, potencial criminoso, é como a cereja no topo do bolo.

Ganha-se muito com a polarização. Antes de mais, e provavelmente acima de tudo, ganha-se uma cortina de fumo. A ‘instalação do medo’ e o diferir da atenção para as divisões é adequada à manutenção da corrosão das instituições e à sua não interrogação.