Interessante a conclusão a que chega Edgar Morin ao afirmar que temos pouca consciencialização e dificuldade em pensar global. Conclui que “a política, baseada na análise dos relatórios, no conhecimento quantitativo, mostra-nos que não é capaz nem pode pensar globalmente, o que é, contudo, vital” (MORIN, 2023, p. 65).

O próprio Papa Francisco tem vindo a alertar que “a atual globalização produz um pensamento único” (Visão | Papa Francisco, 2020). Aliás, numa brilhante alocução feita na World Economic Forum 2024, o Papa Francisco deixa um alerta e um convite: “o processo de globalização, que já demonstrou claramente a interdependência das nações e dos povos do mundo, tem uma dimensão fundamentalmente moral, que deve fazer-se sentir nos debates económicos, culturais, políticos e religiosos que visam modelar o futuro da comunidade internacional. Num mundo cada vez mais ameaçado pela violência, pela agressividade e pela fragmentação, é essencial que os Estados e as empresas se unam na promoção de modelos de globalização clarividentes e eticamente sólidos que, pela sua própria natureza, devem subordinar a busca do poder e do lucro individual, tanto político como económico, ao bem comum da nossa família humana, dando prioridade aos pobres, aos necessitados e a quantos se encontram em situações mais vulneráveis” (FRANCISCO, 2024).

Deste modo, compreendemos melhor como podem ser perigosas as metodologias de avaliação e de condução dos Estados que se alicerçam, quer na quantificação, quer no parcelamento dos factos e da realidade hodierna. A isto, soma-se a perda de memória e a noção de passado como testemunho e como herança (MORIN, 2023, p. 66). Querer viver o ‘momento’ ou, pior, querer apagar o passado, traz consigo enormes problemas do foro existencial, quer na ordem de sentido e de pertença, quer na ordem de significado. Aliás, vemos proliferar a palavra “re-significar” como palavra paladina que magicamente resolve e esclarece o Homem quanto ao seu passado, ao presente e ao seu futuro.

Movidos na sombra da cultura woke [1] (voltaremos a falar mais detalhadamente na alínea d)), o Homem pós-moderno vive ansioso, desconfiado e desesperado. O Homem que ardentemente anseia e deseja viver sob a sua égide e sob a sua vontade, vê-se hoje, mais do que nunca, limitado, condicionado e preso neste desejo de si. Isto é muito curioso: o desejo do Homem ser ele e somente ele, a visão auto-referencial de si e o anseio (quase desesperante) de fruir o mais que pode, tornando-o não um ser livre como seria expectável e como fora idealizado e aclamado pelo Progresso, mas, antes, torna-o escravo de si mesmo, dos seus desejos e da sua necessidade de fruir. Há uma clara inversão do que seria o desejável. Aquilo que hoje nos é vendido como projecto de felicidade, não passa senão de um embuste bem montado e bem oleado e que, ao invés de nos projectar para fora de nós, ao serviço do outro e da comunidade, nos asfixia e nos aprisiona no fundo da caverna platónica. Distraídos pelas sombras, vivemos acorrentados. Pior, viver assim mata e torna-nos violentos. A escuridão, como tão belamente alerta a teologia e a espiritualidade cristã, impede-nos de ver a verdade dos factos, inibe a nossa capacidade de pensar, de gerar conhecimento, de provocar a mudança e o crescimento. Por vezes, dá a sensação que somos ‘crianças’ que, enganadamente, brincam ao jogo da vida e que, livremente, permitem ser manietadas e conduzidas por outros, sempre com uma capa de pseudo e falsa liberdade, prometendo, sistematicamente, a felicidade num ‘loop infinito’ de consumo. Este consumismo, pela dependência que gera e que cria, leva o Homem à sua própria prisão.

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Isto é um grande risco: passar pela vida sem que a vida passe por nós. Podemos correr este severo risco de passar uma vida inteira sem percebermos quem somos, o que estamos destinados a ser e o que devemos ser na vida dos outros e da comunidade. Estou convencido que, mais do que nunca, o Homem hodierno começa a gritar em si mesmo por significado e por sentido.

O Papa Francisco, na Encíclica Laudato Si (FRANCISCO, 2015, 203-221), aponta para a urgência de uma mudança nos nossos estilos de vida que eduque para uma aliança entre a humanidade e o ambiente e que nos conduzam a uma conversão ecológica, ao estilo do modelo de São Francisco de Assis. Já anteriormente, o Papa São João Paulo II afirmara que a situação actual do mundo “gera um sentido de precariedade e insegurança, que, por sua vez, favorece formas de egoísmo colectivo” (PAULO II, 1990, p. 1). Continua assertivamente o Papa Francisco: “quando as pessoas se tornam auto-referenciais e se isolam na própria consciência, aumentam a sua voracidade: quanto mais vazio está o coração da pessoa, tanto mais necessita de objectos para comprar, possuir e consumir” (FRANCISCO, 2015, 204).

Também Lipovetsky assevera que “a cultura pós-moderna é descentrada e heteróclita, materialista e psi, porno e discreta, inovadora e rétro, consumista e ecologista, sofisticada e espontânea, espetacular e criativa; e o futuro não terá, sem dúvida, que decidir em favor de uma destas tendências, mas, pelo contrário, desenvolverá as lógicas duais e a co-presença flexível das antinomias” (LIPOVETSKY, 1989, pp. 12-13).

A palavra-chave da cultura dominante, segundo o pensamento de Edgar Morin, é a quantificação, esquecendo-se, contudo, do que é realmente essencial e que ‘escapa’ ao cálculo: “o sentimento, o amor, a alegria, a tristeza, o desgosto, a dor e o ódio” (MORIN, 2023, p. 65).

Nesta mesma linha de pensamento, Edgar Morin apela ao fim do pensamento binário, isto é, aquele pensamento do ou ou. Sugere, antes, o pensamento disjuntivo do “e-e”. Mais, “não se pode dizer ou crescimento ou redução. Mas, crescimento e redução, o que significa: conceber o que deve crescer e o que deve reduzir” (MORIN, 2023, p. 68). Pois, “o que também deve ser combinado é o desenvolvimento, e o envolvimento. Tudo o que é desenvolvimento no sentido clássico do termo deve ser acompanhado do respeito pelo que o envolve, isto é, pelas comunidades, pelos laços de fraternidade. Quanto mais a mundialização se desenvolve, mais é necessário em simultâneo desmundializar, ou seja, localizar e territorializar. É preciso salvar territórios inteiros da morte económica, que é também uma morte biológica” (MORIN, 2023, p. 69).

Precisamos de mudar urgentemente o nosso posicionamento enquanto seres humanos e enquanto seres integrados (e, direi, responsáveis) na comunidade e na sociedade, e no planeta em que vivemos.

Bibliografia

FRANCISCO, P. (2015, maio 24). Laudato si.
FRANCISCO, P. (2023, outubro 4). «Laudate Deum»: Exortação Apostólica a todas as pessoas de boa vontade sobre a crise climática.
FRANCISCO, P. (2024, janeiro 15). Mensagem do Santo Padre ao World Economic Forum 2024.
LIPOVETSKY, G. (1989). A Era do Vazio. Lisboa: Relógio d’Água.
MORIN, E. (2023). Pensar Global, o Homem e o seu Universo. Lisboa: Edições Piaget.
PAULO II, J. (1990, janeiro 1). XXIII Dia Mundial da Paz.
Visão | Papa Francisco: ‘A atual globalização produz um pensamento único”. (2020, dezembro 18). Visão. 

[1] Sugeria a escuta atenta do podcast “Conversas Visíveis”, do Jornal de Negócios e emitido no dia 2/6/2022, e perceber que “o wokismo, além de ser um pensamento enlatado, apresenta-se como um movimento de moralizadores que pretendem ‘purgar’ as sociedades modernas e ocidentais”.