Uma fotografia: um velho de bengala sentado num banco de jardim e um polícia de pé ao seu lado. Um comunicado da PSP: “o cidadão idoso, após a advertência dos Polícias [o “P” maiúsculo só por si merecia um texto], de imediato colocou a máscara de forma corre[c]ta e justificou o uso do banco pelo estado de cansaço em que se encontrava, pelo que necessitava de um momento de pausa. Perante este cenário, os Polícias, e bem, ofereceram apoio e não registaram qualquer autuação, o que foi motivo de agradecimento por parte do cidadão”. De notar que o “cidadão” tinha na mão uma sanduíche que teria ido buscar a uma cantina social nas imediações da Praça do Marquês, no Porto, onde isto se passou. Resumindo: um velho com uma bengala foi incomodado e repreendido pela “autoridade” porque se sentou num banco de jardim e no fim ainda terá agradecido não ter sido multado, porque a lei é a lei e é proibido, a velhos e a novos, sentar num banco de jardim.
O boneco acima ilustra bem o estado a que chegámos.
Desde Março de 2020, a nossa vida tem sido condicionada pela pandemia, mas, acima de tudo, pelas medidas implementadas para combater a transmissão da Covid-19. O “15 dias para achatar a curva” transformou-se num ano de supressão de direitos e liberdades a uma escala nunca vista em tempos de paz e quase inédita em tempos de guerra. O regresso à normalidade, se é que tal alguma vez será possível, é ainda uma miragem. No espaço público, o debate – tímido e com interlocutores escolhidos a dedo – é exclusivamente entre saúde e economia, ficando a questão dos direitos e liberdades relegada para as franjas das redes sociais e para um ou outro corajoso colunista que se apresta ao pelourinho.
A liberdade não é um valor absoluto, é sabido.
Mas os direitos fundamentais não podem ser suprimidos com base num difuso princípio da precaução nem muito menos tratados como externalidades; no mínimo, devia ser exigido a quem expropria e limita a liberdade dos cidadãos que fosse capaz de provar que estas limitações são indispensáveis para salvaguarda de outros direitos que estão em risco. Mas o próprio fim – nessa colisão de direitos em que uns têm de ser comprimidos para salvaguarda de outros – tem de ser questionado. Dado o risco, salvar a vida de uns vale a miséria de outros? Evitar um eventual colapso do sistema de saúde vale a desconstrução daquilo que convencionámos ser uma vida normal? (A este propósito, é curioso assistir às reacções à suspensão da vacina da AstraZeneca e como – finalmente – surge no debate a “pedagogia do risco”).
Então, como chegámos a um ponto em que é possível que um idoso sentado num banco mereça intervenção policial? E não só é possível como aceite e defendido (escolhi este exemplo por ser o mais recente, mas podia falar do encerramento dos supermercados nas tardes dos fins de semana, das directivas da DGS sobre como proceder em caso de ter de ajudar uma vítima de afogamento, a quarentena obrigatória para crianças institucionalizadas, o fecho dos parques infantis… os exemplos absurdos são às centenas)? Como é que nós, enquanto sociedade, aceitámos a violência e o absurdo da maioria das medidas de combate à pandemia?
Não é fenómeno novo e na História abundam exemplos.
Em 1970, inspirado pelas teorias neomalthusianas muito em voga na época, o governo chinês elaborou um plano quinquenal que incluía metas para o crescimento demográfico. A teoria era simples: o excesso de população era um obstáculo ao desenvolvimento do país e era necessário inverter a tendência. O plano evoluiu para uma política de dois filhos durante os anos 70 e para a conhecida “política do filho único” em 1978. Um cientista militar (os outros tinham “desaparecido” durante a revolução cultural) de nome Song Jian fez uns cálculos e chegou ao número óptimo da população dali a 100 anos – 700 a 800 milhões, aproximadamente dois terços da população chinesa à data (imagino as conversas com os camaradas sobre exponenciais, primeiras e segundas derivadas). Para alcançar esse desiderato, ele concluiu que a trajectória implicava reduzir de forma rápida a natalidade para um filho por casal até 1985 e manter esse valor durante 20 a 40 anos.
No documentário “One Child Nation”, Nanfu Wang, uma cineasta chinesa emigrada nos Estados Unidos, explica em detalhe a forma como a política foi implementada e as suas consequências trágicas – abortos e esterilizações forçadas, expropriação e demolição das casas daqueles que não aceitavam a esterilização, bebés do sexo feminino abandonados e deixados para morrer. O documentário é um murro no estômago e ilustra bem até onde pode ir a engenharia social de um estado totalitário, onde as pessoas não são cidadãos, mas instrumentos na construção de uma qualquer visão alucinada. Há, contudo, algo que se destaca na implementação da política: a propaganda – a TV, a produção artística, os objectos mais simples do quotidiano, os slogans no espaço público, os manuais escolares… em todo o lado a mensagem “menos crianças tornam a vida melhor”. As imagens de famílias com um único filho passavam a mensagem de que a sua “escolha” assegurava o futuro da nação chinesa e que quem não cumpria merecia castigo e a vergonha pública – a vergonha que a realizadora descreve ter sentido na escola sempre que descobriam que tinha um irmão.
A propaganda é uma forma propositada e sistemática de persuasão com vista a influenciar as emoções, atitudes, opiniões e acções de públicos-alvo específicos com fins ideológicos, políticos ou comerciais, através da transmissão controlada de informação parcial (que pode ou não ser factual) através de canais de média directos ou de massa (“A Chronology and Glossary of Propaganda in the United Sates, Richard Alan Nelson, tradução livre).
Propaganda é, portanto, o oposto de informação.
E Propaganda foi o que a comunicação social fez durante o último ano: incutir o medo na população; influenciar as nossas emoções de forma a condicionar o nosso comportamento; criar uma noção de Bem e Mal, onde a Virtude está naqueles que se comportam de determinada forma, mesmo que isso obrigue a deixar de fazer o que convencionámos como normal até Março de 2020. O quarto poder, que devia ser contrapoder, não só deixou de exercer a sua função fiscalizadora como se tornou motor da narrativa: tenha medo, fique em casa, seja virtuoso.
A propaganda criou imunidade à dúvida e deixámos de sequer conceber a possibilidade de os lockdowns não serem a resposta mais indicada à situação e que o custo de certas medidas em termos de vidas devastadas pode ser maior do que o ganho. O “covidismo” transformou-se numa religião, os profetas são os “especialistas”, os jornalistas, cujas prédicas em prime-time substituíram as homilias dominicais, os pastores, e os que ousam questionar os seus dogmas são rotulados de “negacionistas” e enxovalhados, sendo moral e intelectualmente desconsiderados. Quem “relativiza” a Covid tem sangue nas mãos, cheguei a ler de pessoas que tinha por sensatas (não é negar, note-se, é apenas colocar as coisas em perspectiva, relativizar – por definição, “considerar (algo) sob um ponto de vista relativo e não absoluto”).
Da mesma forma que Nanfu foi condicionada a sentir vergonha por não ser filha única, hoje somos condicionados a ver a liberdade como sendo egoísmo.
Há vida para lá de impedir a morte; se o custo de estar vivo é suprimir tudo o que vale a pena, então o custo é demasiado elevado.
As crianças não deixam de brincar em Aleppo – vejo-me na contingência de citar Jerónimo de Sousa: “Como é que se admite que cheguemos a um ponto onde se tem mais medo de viver do que de morrer?”
A defesa teórica do impossível é usada na lapela como símbolo de virtude, esquecendo os devotos que o absoluto moral é privilégio daqueles que pouco ou nada perdem, da “burguesia do teletrabalho” – expressão que vou mandar estampar numa t-shirt, já que não tenho coragem para a tatuar na pele para nunca me esquecer que o meu conforto e segurança recai em milhares de expropriados. Por isso a propensão a desconfinar é muitas vezes maior nas classes mais baixas, porque estar em prisão domiciliária é chato, mas é muito mais suportável para o Ricardo Salgado. A arrogância moral de quem não admite estar errado, de quem só aceita um caminho e apoda de quem ousa pensar diferente de criminoso por actos ou omissões, é típica de quem não olha a meios para moldar os outros à realidade que interpreta dos factos – só há uma alternativa e os virtuosos e iluminados acusam de dedo em riste quem discorda deles.
A Virtude não aceita nuances, só preto e branco, Bem e Mal. “A vida não tem preço” e por isso a supressão de direitos é um mal menor; a miséria é um mal menor; o aumento das desigualdades é um mal menor; as crianças sem aulas é um mal menor; a degradação da saúde física e mental dos velhos é um mal menor; a destruição dos sonhos de uma vida é um mal menor.
Porque no “Livro do Covidismo” só há três mandamentos: “teme a Covid acima de todas a coisas”, “nunca duvides do que dizem os «especialistas»” e “acusa e condena ao opróbrio quem pensa e age de forma diferente”.
E os Virtuosos dormem sempre bem à noite.