São 13h15 de um habitual dia de semana de Abril e acabo de terminar um exame médico. Estou próximo de uma zona da cidade que me é familiar, onde trabalhei, em tempos. A fome aperta com o chegar da hora de almoço e tomo a decisão de revisitar um sítio do qual fui cliente habitual durante um ano. Discretamente arrumado no meio da rua D. Francisco Manuel de Melo, a poucos metros do topo do Parque Eduardo VII fica “O Cubo”, um modesto Restaurante, que é, ao mesmo tempo, snack-bar e pastelaria, mistura bizarra esta que, aparentemente, só nós portugueses sabemos bem fazer, e que soará incompreensível se explicada ao ouvido de um qualquer estrangeiro.

Peço mesa para um, e sou levado por uma das empregadas de sala até uma mesa individual no centro do restaurante, peço um dos pratos do dia, mão de vaca com grão, e uma imperial. Enquanto descanso da caminhada e aguardo pela minha refeição faço o esforço de observar a casa. À minha esquerda, almoçam mão de vaca um grupo de quatro ou cinco bancários – a sede do Crédito Agrícola fica a escassos metros de distância. À minha frente, um metaleiro cheio de tatuagens e roupas pretas almoça com um mediador de seguros. Atrás de mim, entre doses de mão de vaca e entrecosto estufado, almoça um grupo de guardas prisionais – o estabelecimento prisional é logo ao virar da esquina. Num dos cantos, um grupo de trabalhadores da construção civil repasta-se com arroz de polvo. Neste hiato, entram sem que eu dê por isso, duas trabalhadoras do ramo das acompanhantes e posicionam-se ao balcão para pedir dois cafés, onde já se encontrava um polícia e um par de funcionários municipais da recolha do lixo a tomarem também a sua bica antes de regressarem ao serviço.

Perante este cenário vejo-me confrontado com uma leve sensação de estranheza que se mistura com um inusitado conforto. Estranheza porque, hoje em dia, é cada vez mais difícil ver-me a frequentar estes locais onde o povo se mistura sem pudor, onde o director de um departamento de um banco nacional almoça lado a lado com um trabalhador da construção um simples prato do dia de um cardápio com pratos tipicamente portugueses. É difícil frequentar estes locais na medida em que, estes, não ocupam o mínimo espaço nos nossos feeds de uma qualquer rede social, não são trendy, não são instagramáveis, não dão likes nem interacções, não são cozinha de autor de chefs que frequentam os programas da manhã, é preciso conhecer o local ou “esbarrar” com ele numa qualquer circunstância do dia a dia. E conforto porque, além de ser uma máquina do tempo, que nos faz recuar a lugares semelhantes que conhecemos da infância, é também, em si, um lugar onde o povo se despe da sua vida à porta, sabendo que, ali dentro, é um entre iguais, independentemente da “farda” que traga vestida, naquele lugar, plebeu e visconde sentam-se ao mesmo nível e almoçam o mesmo prato, retirado do mesmo tacho, onde lhes será cobrado o mesmo modesto preço, e onde a sua voz e opinião se digladiam de igual para igual enquanto se desfruta de pratos de qualidade e quantidade a preços providos de decência.

“O Cubo” é explorado pelo Sr. Luís, que não se inibe de assumir o seu genuíno ar austero e sério, recusando esconder-se por detrás de sorrisos amarelos palermas, e atendendo cada cliente com todo o profissionalismo e entrega que lhe são humanamente possíveis, a sua austeridade reflecte-se no seu serviço obstinadamente atencioso sem nunca exibir um pingo de subserviência irritante comum em tantos locais de culto nos dias de hoje. Se a casa está mais vazia, o Sr. Luís não se inibe de dar um ou dois dedos de conversa mais confiante com os seus clientes habituais, seja sobre uma notícia, sobre uma graçola, ou sobre o seu Benfica, e sim, se há coisa de que não se inibe com certeza, é de assumir o seu enorme benfiquismo, sempre dentro das regras do fair play para com todos os clientes de outras cores futebolísticas.

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Genuinidade, alma e conteúdo. Aspectos tão difíceis de encontrar nos corriqueiros spots que nos surgem no feed do instagram com os seus cafés orgânicos, tostas de abacate, chefs de tik tok, muffins de espinafres e nómadas wokes de gorro na cabeça em pleno verão, nos seus portáteis, exibindo orgulhosamente os seus pares de ténis encardidos.

Torna-se paradoxal que sejam estes locais “instagrâmicos” que estejam associados com o progresso moral e intelectual da sociedade, com os seus ideais de inclusão e diversidade, mas que neles apenas se encontrem maioritariamente pessoas da mesma tribo urbana, com o mesmo tipo de ideais, o mesmo tipo de problemas primeiro-mundistas e o mesmo tipo de visões de vida. Ao entrar num destes lugares para pedir um café americano e um bagel misto, não se sente, nem de perto nem de longe, que nestes locais, estes jovens se consigam ver confrontados com os problemas da maioria do tecido social. Como entender o fenómeno da disseminação de ideias de extrema direita nas forças de segurança, motivado pela precariedade da profissão aliada aos seus perigos e a salários miseráveis, num lugar onde não entra um polícia, um GNR ou um guarda prisional? Como entender os problemas de um funcionário camarário que aufira o salário mínimo e faça 30 km de comboios lotados para chegar ao trabalho num lugar onde não se vê um único? Como entender o fenómeno das mulheres que se veem forçadas a fazer uso sexual do próprio corpo para conseguirem levar dinheiro para casa, num local onde não são confrontados com essa realidade? Como entender as dificuldades de um casal jovem de classe média baixa, que ganhe, cada um, o salário mínimo num qualquer call center e vivam num quarto alugado numa casa partilhada com desconhecidos, se nenhum dos dois tem desafogo financeiro de se dar ao luxo de pedir um latte macchiato num lugar destes?

Sem se ser confrontado com estas realidades não se será facilmente possível entender os verdadeiros problemas do nosso tecido social, que são problemas sentidos pela larga maioria das pessoas, e que são, em si, problemas graves de exclusão social, que causam os seus problemas de pobreza e marginalidade. Isto não se observa atrás de um portátil da Apple ladeado por um frapuccino, num local cheio de portáteis da Apple ladeados por frapuccinos, observa-se no Cubo, e noutros “Cubos” que todos nós conhecemos pelo nosso país fora, cada um com o seu Sr. Luís, ou Sra. Fátima, com os seus ares austeros e semblantes de quem sabe bem o que a vida custa a ganhar, aos quais juntam uma relação de proximidade e familiaridade com cada um dos seus clientes e uma relação lealmente umbilical com o seu estabelecimento de decoração fora de moda e conservadora, exibindo as suas garrafeiras foscas em prateleiras de vidro acompanhadas por um relógio de parede de uma marca de gelados e um quadro do emblema de um clube de futebol. Genuinidade.

É nestes recônditos locais de culto, que hoje navegam debaixo de todos os radares do mundo digital, que o país se conecta, se observa e toma noção de si próprio e dos seus problemas reais e crus. Aqueles problemas com capacidade de levar a sociedade para as ruas e de levar cruzes a quadradinhos, problemas que se veem afogados na espuma dos dias dos noticiários quando mais um escândalo ocupa horas intermináveis de comentários e reacções que se repetem exaustivamente no argumentário. Os “Cubos” são o ligamento que une o cidadão ao Estado, formando assim a Pólis, o lugar onde os diferentes coabitam, se observam e se tentam compreender, no sentido de negociarem e reinventarem o seu modus vivendi, para que a sociedade se molde em função dos problemas de hoje, dos problemas do todo, e não de uma mera tribo com relativo poder mediático.

Os “Cubos”, são os lugares humildes onde o país se encontra à mesa e ao balcão consigo mesmo, um lugar de inclusão e igualdade onde este se questiona, responde, e se critica, onde o seu “ethos” e “pathos” colidem, no sentido de alcançar um “logos”. São um pilar fundamental da nossa liberdade, onde a cidadania se exerce e escrutina sem se dar conta por entre garfadas de mão de vaca com grão.

Lugares que não projectam sofisticação. Constroem um país.