O discurso de Luther King
O dia 28 de agosto ocupa um lugar central na história dos Estados Unidos: foi nesse dia, em 1963, que teve lugar a célebre March on Washington for Freedom and Jobs, que juntou mais de 250 mil pessoas em frente do Lincoln Memorial com o objetivo de apoiar a legislação de direitos civis que o Presidente John F. Kennedy procurava aprovar no Congresso.
Esta mobilização resultou da intensificação da luta dos afroamericanos que, nos últimos anos, reivindicava o reconhecimento de uma igualdade efetiva perante a lei e a superação das chamadas leis Jim Crow, que mantinham nos estados do sul a segregação racial desde o final do século XIX. Apesar das emendas à Constituição que foram aprovadas após a guerra da secessão (a 13.ª emenda aboliu a escravatura em 1865; a 14.ª emenda garantia cidadania e igual proteção da lei a todos aqueles que nasçam ou sejam naturalizados nos Estados Unidos, incluindo antigos escravos, de 1868; e a 15.ª emenda garantia o direito de voto aos homens negros), muitos estados do sul mantinham leis que limitavam ou impediam o exercício do direito de voto dos afroamericanos, permitiam o funcionamento de escolas segregadas e admitiam a discriminação em função da raça em hotéis, restauração ou autocarros.
As leis Jim Crow foram legitimadas pela decisão Plessy v. Ferguson, de 1896, que estabeleceu o princípio “separados mas iguais”, considerando que tais leis não violavam a constituição norte-americana desde que os serviços fossem igualmente oferecidos a negros e brancos. Esta cláusula injusta foi alvo de contínuo protesto judicial, nomeadamente pela maior e mais antiga organização de direitos civis dos afroamericanos: a NAACP (National Association for the Advancement of Colored People), criada em 1909. Mas apenas em 1954 a NAAPC pôde reivindicar a sua grande vitória com a famosa decisão Brown v. Board of Education, na qual o Supremo Tribunal proibiu a segregação racial nas escolas públicas. Foi um passo decisivo para o início dos anos de luta pelos direitos civis que duraria praticamente até ao final dos anos de 1960 com a morte de Martin Luther King Jr.
Luther King assumiu protagonismo com o chamado Montgomery Bus Boycott (que começa com a história lendária de Rosa Parks), protesto que durou mais de um ano, entre o dia 5 de dezembro de 1955 e o dia 20 de dezembro do ano seguinte, até finalmente ser decidida a proibição da segregação racial nos autocarros. O talento oratório de Luther King tornaram-no uma figura de referência durante aquele protesto, e foi ele que assumiu o protagonismo na Marcha sobre Washington, quando proferiu aquele que se tornaria um dos discursos mais importantes da história ocidental: “I have a dream”.
O daltonismo liberal
Apesar de curto, encontramos em “I have a dream” as principais linhas orientadoras do pensamento de Martin Luther King, sedimentadas na tradição evangélica do cristianismo (King era pastor batista) e que o levou à defesa de um princípio de não violência e da doutrina da fraternidade e do amor na política. Filosoficamente, King assume-se como herdeiro dos valores do liberalismo filosófico que orientavam os Founding Fathers e é nessa medida que exige as consequências últimas e efetivas daqueles valores:
“Quando os arquitetos da nossa República escreveram as magníficas palavras da Constituição e da Declaração de Independência, eles estavam a assinar uma nota promissória de que todos os americanos seriam herdeiros. Esta nota era uma promessa de que a todos os homens – sim, tanto negros como brancos – seriam garantidos os direitos inalienáveis à vida, liberdade e busca de felicidade. É hoje óbvio que a América está em falta quanto ao pagamento desta nota promissória no que diz respeito aos seus cidadãos de cor. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, a América deu à população negra um cheque sem cobertura, um cheque que tem sido devolvido com a indicação de fundos insuficientes.”
King não hesita, por isso, em citar as palavras da Declaração de Independência, que estabelecem os princípios liberais do sonho norte-americano: “Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais”. Em causa estão direitos iguais perante a lei e as mesmas liberdades e oportunidades para todos os cidadãos. É nesse sentido que segue aquela que será a frase mais citada do discurso:
“Eu tenho o sonho de que os meus quatro pequenos filhos viverão um dia numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pelo conteúdo do seu caráter.”
É essencial considerar esta argumentação liberal de King, uma vez que este período de luta social é marcado por uma enorme complexidade, contando com a mobilização de vários grupos de protesto, desde o movimento Black Power aos projetos de nacionalismo negro, que defendiam formas violentas de luta e visões políticas de separatismo racial. Luther King manteve-se afastado destes movimentos separatistas, apelando à não-violência e defendendo sempre a possibilidade da criação de um país pós-racial.
Em 1967, na celebração dos dez anos sobre a criação da Southern Christian Leadership Conference, Luther King discursa a pensar no futuro: “Where do we go from here?”. Reconhece as conquistas realizadas na última década, mas aponta que ainda há muito a fazer, pelo que recorre à lição de Jesus a Nicodemos para traçar o desafio norte-americano: “a América deve nascer de novo”. E embora aponte o dedo ao sistema económico, que se traduz em exploração e condena tantos dos seus cidadãos à pobreza, mantém a mensagem pós-racial e universalista.
O novo racismo
O sonho de direitos e oportunidades iguais expresso por King, a partir de uma tradição universalista cristã, espelhava o espírito liberal que fez os Estados Unidos acreditarem ser possível tornarem-se uma sociedade pós-racial, isto é, uma sociedade onde a cor de pele deixasse de ser relevante, o mesmo é dizer, onde o racismo fosse erradicado ou, pelo menos, minimizado. Quando Barack Obama foi eleito em 2008, muitos viram nesse momento a concretização de uma sociedade pós-racial, construída desde a longa década de luta pelos direitos civis. Finalmente o país teria conseguido sarar as feridas de um nascimento marcado pela escravatura; finalmente poderia proclamar, apesar dos problemas ainda remanescentes, a igualdade de todos os cidadãos perante a lei.
Não é este, porém, o entendimento dos autores e ativistas que, a partir da teoria crítica da raça, continuam a denunciar um racismo profundo que marcaria a sociedade norte-americana, sem reconhecer quaisquer melhorias recentes. Mais do que isso, parecem considerar que as condições estão ainda piores e que o daltonismo ou cegueira de cor é uma ideologia racista, e ainda mais perigosa do que o racismo das leis Jim Crow. Por que razão?
Robin DiAngelo, em Fragilidade Branca, diz-nos que,
“[e]mbora a ideia de cegueira cromática possa ter começado por ser uma estratégia bem-intencionada para romper com o racismo, na prática ela serviu para negar a realidade do racismo e, assim, perpetuá-lo.”
Isso acontece porque, como diz Eduardo Bonilla-Silva, no livro Racismo sem racistas:
“Enquanto para o racismo Jim Crow a posição social dos negros se devia à sua inferioridade biológica e moral, o racismo da cegueira de cor evita tais argumentos simplistas. Em vez disso, os brancos racionalizam o status contemporâneo das minorias como o produto da dinâmica de mercado, de fenómenos que ocorrem naturalmente e das limitações culturais imputadas aos negros.”
“Os brancos” explicariam então a atual desigualdade racial como resultado de razões não raciais, menosprezando o papel do racismo na produção dessas desigualdades – e, assim, a ideologia da cegueira de cor, longe de ser um comportamento não racista, é na verdade “fundamental para preservar o privilégio branco”.
Embora este argumento tenha algum mérito, importa não esquecer o seu pressuposto identitário: estes autores exigem, na sua argumentação, que reconheçamos uma determinada identidade (branca ou não branca) e condicionemos a nossa visão do mundo, dos dados e da experiência a essa identidade. A consciencialização da identidade branca (“nomear a branquitude”) é particularmente importante para “os brancos”, uma vez que estes resistem a compreender que não falam por todos, mas apenas pelo seu grupo e pelos seus privilégios (é a ilusão liberal da universalidade). Como diz DiAngelo:
“Dizer que a branquitude é uma perspetiva a partir da qual as pessoas brancas olham para si mesmas, para os outros e para a sociedade é dizer que um aspeto importante da identidade branca é vermo-nos a nós mesmos como indivíduos, fora da raça ou inconscientes dela – “apenas humanos”. Este posicionamento vê as pessoas brancas e os seus interesses como centrais para a humanidade e como representativos dela. Os brancos também produzem e reforçam as narrativas dominantes da sociedade – como a do individualismo e a da meritocracia – e usam-nas para explicar as posições dos outros grupos raciais. Estas narrativas permitem-nos congratularmo-nos pelo nosso sucesso dentro das instituições da sociedade e culpar os outros pela sua falta de sucesso.”
Opondo-se à visão universalista de King, esta visão iliberal tem moldado a luta contra o racismo nos Estados Unidos e vai chegando à Europa, apesar de as condições serem aqui substancialmente diferentes. É uma visão que nos encerra em identidades tribais e inibe a possibilidade de diálogo. E embora quase sempre reclamem a herança de Luther King, têm na verdade pouca relação com o seu pensamento. Basta recordar como King termina o discurso de 1967: “Continuaremos insatisfeitos até ao dia em que ninguém gritará “Poder branco!”, nem ninguém gritará “Poder negro!”, mas todos falem do poder de Deus e do poder humano.” Já os novos ativismos remetem-nos para identidades e para o conflito. Ou como diz Michel Onfray, em Autos-de-Fé:
“Doravante, o novo horizonte inultrapassável é o da regressão no sentido das hordas primitivas de que Darwin falava n’A Origem do Homem: lugar às tribos, às etnias, às raças, ao sangue, às pigmentações.”