Conheci o Movimento Memorial (russo) em Moscovo, em 1989. O meu encontro com eles foi dos momentos mais marcantes da minha vida e que nunca esquecerei. Na verdade, fui, em 1989, a Moscovo, fazer uma reportagem para o jornal Expresso sobre as primeiras eleições livres na Rússia, em resultado da Perestroika de Gorbatchov e acompanhar muito especialmente o candidato de Moscovo Boris Ieltsin, dois anos mais tarde primeiro presidente da Rússia, eleito em votação direta pelo povo. Tinha sido expulsa do PCP, mas ainda via no comunismo um contributo fundamental para o futuro da Humanidade.

Moscovo fervilhava porque vivia os seus primeiros dias de liberdade na imprensa escrita e na televisão, abriam os primeiros cafés onde se convivia sem medo, assistiam-se aos primeiros concertos de rock  que eram proibidos e discutia-se alto na rua e não  sussurros. Tudo  tinha um ar de festa, de vida, de alegria e de liberdade. Lembrava-me os dias do 25 de Abril em Portugal.

De tudo o que vi e vivi nessa altura, na ainda URSS, marcou-me especialmente o dia em que o José Milhazes me levou à sede da Organização dos Realizadores de cinema para conhecer o Movimento Memorial, que então dava os primeiros passos.

A organização Memorial tinha sido idealizada por Andrei Sakharov, famoso cientista nuclear soviético e conhecido dissidente comunista, ele próprio Prémio Nobel da Paz em 1975 pela coragem da sua luta pela liberdade e pelos direitos humanos na URSS. Sakharov não foi autorizado pelas autoridades comunistas a receber pessoalmente o prémio e, em contrapartida. montaram contra ele um processo fantoche em que o acusaram de desvio de dinheiro. Acabou condenado a prisão domiciliária de que se livrara muito recentemente. Na boa tradição comunista, os dissidentes nunca têm divergências políticas ou ideológicas, mas desviam fundos ou são fascistas.

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A apoiar a ideia de Sakharov de criar este movimento juntou-se Soljenitsin (acusado de fascista), expulso da União Soviética e também ele Nobel ainda no exílio (do qual regressaria em 1994). Soljenitsin havia publicado no Ocidente (1974) o livro Arquipélago Gulag, a maior e mais tocante denúncia do Gulag, no qual relatava a sua vida num dos campos de concentração. A eles se juntaram também muitos intelectuais e as suas organizações, como artistas de teatro, escritores, designers, e jornalistas.

Cheguei à sede dos cineastas cedo, numa manhã gelada de Março (com 10 graus negativos), atravessando as avenidas cobertas de neve. A primeira imagem que recordo foi a fila imensa de mulheres e homens, mais mulheres de idade, com ar pobre, vindas de toda a URSS. Podiam finalmente vir, porque tinham acabado com os passaportes internos. Viajavam de camioneta ou comboio até lá, para saber o que tinha acontecido a familiares que um dia tinham desaparecido, levados pela Tcheca, pelo NKVD, ou pelo KGB, as polícias secretas ou autoridades políticas do regime soviético, sem que nunca mais tenham sabido do seu paradeiro. Pela primeira vez na vida da URSS, as pessoas podiam vir procurar os seus familiares, podiam vir a Moscovo porque  vinham sem medo e com a esperança de encontrar vivos os seus familçiares queridos.

Percebi então que traziam tudo o que tinham dos desaparecidos: um documento, uma carta, a data em que foram levados, ou uma ou outra fotografia. Mantinham acesa a esperança de que ainda estivessem vivos e que apenas tivessem seguido numa das múltiplas deportações internas dos povos vários que constituíam a URSS. Era gente pobre e simples, gente comum vinda de todo o império.

O Movimento Memorial nasceu para dar nome às vítimas e homenageá-las. Os voluntários que lá estavam a receber as pessoas na instalação improvisada registavam os seus testemunhos. Era necessário saber e as famílias tinham esse direito. Para que tamanho horror não se repetisse, a sociedade também tinha de saber quem tinha morrido nos campos do Gulag e a razão da sua morte. Se tinham morrido de fome ou de doença, de tortura ou fuzilamento, ou em trabalhos forçados a construir os canais do Volga, ou o Metro de Moscovo, ou ainda os descomunais e gigantescos edifícios que invadiram Moscovo e as capitais das Repúblicas e foram durante anos o orgulho do regime comunista.

Nessa altura, os voluntários que lá trabalhavam dia e noite explicaram duas importantes ideias que os movia: as vítimas do comunismo, muitas dezenas de milhões, eram até aí apenas números, não tinham nome, nem família, nem esculturas ou monumentos, eram simplesmente apagadas pelo tempo. Era preciso devolver-lhes o passado e a memória e conhecer a dimensão e os responsáveis do maior e mais terrível genocídio que a humanidade tinha conhecido.

Existiam importantes livros, artigos na imprensa ocidental, denúncias e numerosos e importantes testemunhos de dissidentes desde 1917. Mas tudo junto era muito pouco para a dimensão do terror vermelho, muito tolerado e branqueado nas sociedades ocidentais, por numerosos intelectuais e gente das elites da cultura, da arte e das universidades, ao contrário das vítimas do nazismo, assassinadas ou deportadas, mortas, fuziladas nas câmaras de gás de Auschwitz ou Dachau.

As únicas vítimas do comunismo recordadas e conhecidas desde o fim do Estalinismo eram os próprios dirigentes comunistas assassinados durante as diversas purgas estalinistas, como Trotsky, dois terços do comité Central do PCUS e quase todos os que tinham feito a Revolução de Outubro. Tudo se resumia, pois, ao reconhecimento do assassinato de membros do Politburo, do Comité Central e, mesmo esses, nenhum era da época de Lenine. Todas as dezenas de milhões de todos os povos da URSS mortos pela repressão tinham sido apagadas da História. Desapareceram, esquecidos e, mesmo, negados.

Por isso, o Movimento Memorial tinha decidido, logo nesses tempos iniciais, dar corpo a um primeiro monumento muito simbólico e tocante às vítimas do comunismo. O monumento, constituído por uma grande pedra vinda do Mosteiro Ortodoxo de Solovki, numa ilha no Báltico, foi colocado na Praça Lubianka, no coração de Moscovo, onde os bolcheviques desde Lenine e Dzerjinski instalaram a Tcheka, a famosa polícia política secreta soviética, mais tarde NKVD e, posteriormente, KGB. Aí, funcionou não só o serviço da polícia secreta soviética, como uma prisão de tortura, onde foram fuzilados muitos resistentes ao totalitarismo comunista.

Essa pedra veio do primeiro campo de “trabalho corretivo”, ou campo de concentração mandado abrir por Lenine, no que foi o início do triste caminho para milhões de mortes no Gulag. A pedra veio do Mosteiro transformado em prisão logo após a revolução. Sabe-se que, quando foram conhecidos no Ocidente, os fuzilamentos que ocorriam nesse antigo mosteiro ortodoxo e surgiram algumas críticas aos bolcheviques, Lenine enviou como emissário para branquear a sua imagem e a da prisão o escritor Máximo Gorki que escreveu algumas das páginas mais negras da literatura mundial, descrevendo a beleza do local e das suas paisagens, para escândalo de Thomas Mann.

Esse monumento ainda hoje lá está, apesar da proibição do Movimento Memorial. Putin e o seu KGB ainda não tiveram coragem de o retirar e de no dia a seguir ao anúncio do Nobel  terem decidido  confiscar todos os seus bens e instalações.

O trabalho que desde esses dias realizaram foi notável. Em Moscovo, estão na origem do Museu de História do Gulag, excelente para se perceber o que foi, que dimensão teve e quanto durou cada campo. Só assim se pode quantificar as vítimas, mas sobretudo dar-lhes nome e mostrá-las.

O Museu do Gulag é do melhor que hoje se faz em Londres ou nos Estados Unidos e está no seu fundamental disponível na internet. Baseado na mais moderna tecnologia e recursos interativos, conduz-nos a esse horror de milhões de vítimas. Recordo que não há muitos anos o visitei com familiares e amigos e a meio da visita parámos no café do Museu para ganhar coragem para ver o resto. Instalaram-no junto à Praça Vermelha num local pouco visível e esteve sempre fora das agências de turismo russas. Foi sempre mais fácil encontrar um “Lenine” para com ele tirar uma selfie, do que a porta do Museu do Gulag.

Com muitas dificuldades, sobretudo depois de saída de Ieltsin, os voluntários do Movimento recolheram milhares de depoimentos de testemunhas, descobriram lugares e marcas de campos de morte e de trabalhos forçados por baixo de anos de neve, digitalizaram e filmaram, organizaram arquivos e puseram-nos ao serviço do “dever de memória”. Estudaram e digitalizaram os arquivos da polícia secreta e os milhões de papéis dos arquivos dos campos e tornaram essa informação acessível.

A partir dos seus registos e com a sua ajuda fizeram-se, e fazem-se filmes, documentários, escreveram-se muitos e importantes livros, como o Sussurros, de Orlando Figes, que editei em 2010, escrito em colaboração com o Movimento Memorial, sobre o quotidiano da vida na União Soviética de famílias e pessoas ao longo dos 60 anos de comunismo. Escreve ele: “O sistema soviético exerceu a sua influência na esfera moral da família durante três quartos de século; nenhum outro sistema totalitário teve um impacto tão profundo na vida privada dos seus cidadãos – nem sequer na China comunista (a ditadura nazi, que é muitas vezes comparada ao regime comunista, durou apenas 12 anos).“

Este dever de memória é uma atividade fundamental num Estado de Direito e particularmente em países que viveram sob regimes totalitários comunistas que sempre negaram e apagaram a História.

Não foi só o Holodomor na Ucrânia, nem Katyn na Polónia, foi o próprio Gulag, com os seus múltiplos campos de concentração, considerado por muitos um devaneio louco de Estaline, enquanto Secretário-Geral do Partido Comunista da URSS, que, para vergonha nossa e descaramento sem nome, era desconhecido há poucos anos da Diretora do Museu da Resistência de Lisboa, ex-deputada comunista.

Como dizia um cartaz de dissidentes, servindo-se do típico humor russo, que comprei na rua Arbat em Moscovo: “O futuro é glorioso e científico; o passado a Deus pertence.” E no que respeita às vítimas do comunismo, o passado foi sempre branqueado e apagado. Ainda recentemente, Francisco Louçã fez troça de quem recordava o horror das vítimas do Holodomor, nomeadamente dos casos de canibalismo, na tristemente célebre Fome decidida pelo Partido Comunista da URSS contra os ucranianos, entre 1932 e 1934, e que matou milhões de conterrâneos de Zelenski.

O Movimento tem um património de memória histórica precioso e muito importante para recordar e homenagear todas essas vítimas. Tem uma atividade notável e meritória, respeitada pelos investigadores universitários de todo o mundo e por todos os que desejam conhecer no seu todo a banalização do mal que tanto marcou a história do século XX na Europa ocidental e que ainda hoje são poder em grande parte do mundo.

Foi assim que na Rússia atual se agravaram as políticas de desrespeito pelos mais elementares direitos humanos, se multiplicam os atentados contra a liberdade e que o Memorial abriu uma segunda frente de atividade: a luta pela democracia, a liberdade e os direitos humanos na Rússia de Putin.

Há um ano, o Memorial foi proibido de exercer a sua atividade e, agora, no dia em que se anuncia o Prémio Nobel da Paz, um tribunal russo decidiu confiscar as instalações da organização. Não vai confiscar a memória que o trabalho imenso realizado pelo Movimento Memorial realizou ao longo de todos estes anos e, em muito boa hora, homenageado e anunciado em Oslo, capital da Noruega, pelo Comité Nobel.

O passado comunista da Rússia já não pertence, como ironizavam os dissidentes comunistas, a Deus. O futuro, esse, sim, ainda está carregado de incertezas.