Se há datas especiais no curso de uma vida, são os dias de aniversário dos que nos são particularmente queridos. Gravamos para sempre o dia do seu nascimento, mas também dificilmente esquecemos o dia em que partem deste mundo. Quem tem apenas a experiência de ser filho, guarda as datas dos pais e dos irmãos, entre muitos outros, mas quem passou pela experiência de ser pai sabe que é impossível apagar o momento do nascimento de um filho. E é a esse dia que voltamos ano após ano, a transbordar de alegrias e nostalgias.

As mães e pais que cuidaram e cuidam dos seus filhos, que os amam e os ajudam a crescer, que os veem sair de casa e, tantas vezes, voltar para ficarem mais uns tempos, que os ajudam a criar a sua própria descendência, celebram o aniversário de cada filho com um suplemento de felicidade que nasce da gratidão por existirem, mas também por tudo o que recebem deles ou através deles.

Sabemos que por cada filho que nasce, nasce também um pai e uma mãe. Mesmo que haja mais filhos em casa, os pais renascem com cada um e isso é fabuloso, pelos cúmulos e cúmulos de memórias únicas, pelas coisas que são absolutamente de cada um, pelas naturezas e feitios irrepetíveis, e também por tudo o que cada filho ou filha ‘desmancha’ em nós, sejam as expectativas do filho-ideal, sejam as ‘peças’ de que somos feitos, que eles tantas vezes nos obrigam a desencaixar e a encaixar de novo, só para os conseguirmos perceber e sabermos educar de forma ajustada às suas personalidades.

Cada família é uma nação, diz uma grande amiga minha. Não me canso de repetir a frase nem de fazer minha a sentença por ser incrivelmente real, mas também por poder ser milimetricamente conferida no quotidiano. Cada família é uma nação com território próprio, numa geografia que encerra relações de vizinhança, fronteiras e regras, códigos de conduta e valores que são absolutamente (por vezes também absurdamente) singulares.

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Dentro do perímetro da sua pequena-grande nação, cada família tem as suas peculiaridades, as suas extravagâncias e as suas lutas territoriais. Podem começar num braço de ferro pelo espaço de um quarto, pode ser uma batalha mais ou menos feroz por decisões maiores ou, simplesmente, pela posse menor do comando da televisão, mas também pode ser uma guerra alimentada por expectativas sucessivamente frustradas. Pode ser tudo isto e muito mais, sabemos bem. O excesso de proximidade e a maneira como vezes demais damos por adquiridos os sentimentos dos que pertencem ao núcleo familiar levam-nos a excessos. De amor e desamor, note-se.

O dia dos anos de um filho é uma bandeira, uma espécie de estandarte que se iça à vista de todos e, por isso, se impõe a toda a nação. Nas famílias unidas e felizes marca a celebração de uma vida, mas em territórios mais áridos ou atravessados por desavenças, pode ser um dia de tréguas porque ninguém é imune ao dia de aniversário daqueles que gerou.

O dia dos anos de um filho pode realmente ser tudo isto e muito mais, insisto. Pode inclusivamente ser o dia de maior e mais profundo sofrimento para uma mãe e um pai. Porventura o mais difícil de todos os dias do ano.

Penso nas mães e pais que perderam os seus filhos cedo demais. Dizer ‘cedo demais’ chega a soar bizarro porque pela lei da vida deveriam ser os filhos a enterrar os pais e nunca o contrário. O dia dos anos de um filho que já não está entre nós é uma dor sem tamanho nem sentido. Dizem que a única dor que o tempo não cura nem apaga é a da morte de um filho. Acredito.

Estou próxima de mães e pais que celebram o dia de anos dos seus filhos sem os poderem abraçar, sem os poderem ter consigo, e pergunto-me como seria, se fosse comigo. Durante muitos anos dei apoios pontuais à Associação A Nossa Âncora, de pais em luto, e fiquei cheia de amigos unidos pelo mesmo sofrimento. Em casa também mora connosco quem perdeu um filho (a minha própria mãe) e todos os dias nos entra pela porta uma mãe a quem o filho morreu exatamente no dia em que fazia anos. Uma e outra celebram estes dias em silêncio, muitas vezes com lágrimas, mas ambas dão um testemunho de força e valentia admiráveis. Uma guarda a memória remota de um bebé que não chegou a sair da maternidade, outra traz no coração a última imagem de um belo rapaz de 16 anos que saiu de casa num dia de calor para ir dar um mergulho com amigos.

Acredito que existe apenas uma realidade pior e ainda mais dolorosa do que a de perder um filho: o seu desaparecimento. Não saber de uma filha ou um filho que, de um instante para o outro, desaparecem sem deixar rasto, deve ser uma verdadeira tortura. Um massacre sem igual, pois as dúvidas sobre o seu paradeiro, sobre a sua integridade física, sobre o seu estado de saúde, sobre a privação de conforto, de proteção e do amor dos que o amam, bem como a incerteza sobre se estarão a ser vítimas de qualquer forma de exploração e/ou maus tratos é insuportável.

Em Portugal conhecemos casos brutais de desaparecimento e trazemos no nosso coração o olhar trespassado de dor desses pais e dessas mães que deixaram de conseguir dormir, que nunca mais voltaram a conseguir descansar por não saberem do paradeiro dos seus filhos. Alguns vivem esta realidade há mais de trinta anos. Décadas e décadas de desespero e luta, anos a fio de noites em branco e angústia asfixiante.

Se falo destas mães e destes pais é para lhes prestar homenagem, pois para eles não deve haver dia mais difícil no ano (já de si todo tão difícil) que o dos anos do filho ou da filha que desapareceu e sobre quem nada sabem.

Tudo isto me leva a agradecer ainda mais no dia dos anos do meu filho. A gratidão transborda no meu coração por me ter sido dado ser mãe e por ele ter um pai que é o melhor que podia ter. Mas também me leva a escrever por haver tantas mães e pais que desperdiçam oportunidades de estarem com os seus filhos e pior, demasiados que os usam como armas de arremesso em tribunal, ou nos media, só para castigarem os seus ‘ex’. Tantos pais que se estão nas tintas para os filhos e os abandonam. Tantos que em vez de lhes darem o seu amor, o seu tempo, a sua presença e a sua atenção preferem comprar o amor dos filhos com dinheiro e presentes. Mesmo sabendo que este amor é de graça e a sua existência uma Graça.

Os filhos dão trabalho, ralações e despesa? Sim, dão. Mas dão muitíssimas mais alegrias! E a vida de cada um é uma fonte inesgotável de celebração e gratidão. No dia dos anos do meu filho aconteceu-me rever o filme da sua vida e deter-me em certos episódios da sua infância, mas olhando para o lado e tendo em conta todas estas realidades de que falo, dei-me conta de que o privilégio maior é ele estar vivo e eu sabê-lo próximo. Nada, absolutamente nada, se compara a esta felicidade.

PS: Neste dia 11 de Setembro é impossível não ter presentes também todos os pais que perderam os seus filhos em atentados terroristas. E nas guerras, todas as guerras.