A compaixão salva vidas e alguns dos grandes mestres da compaixão passam quase todo o seu tempo à cabeceira de doentes e pessoas muito frágeis, em hospitais e clínicas, lares e casas de família. Enfermeiras e enfermeiros de todas as idades e origens são capazes de resgatar muita gente do seu sofrimento quando se entregam de alma e coração à missão.

Impressiona ver o poder de um gesto, o efeito pacificador de um olhar ou do toque, o impacto de algumas palavras em doentes crónicos e agudos, em pessoas no auge da sua fragilidade, em vítimas de acidentes ou de doença súbita. Muitos filmes e séries de televisão se têm feito a partir de testemunhos reais, de factos históricos, de tempos de guerra em que os soldados que combatem na frente de batalha contam com outro exército na retaguarda: o dos médicos, enfermeiros, terapeutas e cuidadores.

Homens e mulheres de todos os tempos honram com o seu trabalho, o seu profissionalismo, a sua competência, ciência e experiência, a memória de Nightingale, a pioneira da enfermagem moderna. Há e haverá sempre os que não nasceram para este sacerdócio, mas essas e esses são infinitamente menos que os outros. Sabemos de muito mais histórias extraordinárias do que de episódios aterradores passados com enfermeiros de turno. Uns e outros mexem com a atitude dos doentes e familiares, e também por isso importa sublinhar o poder terapêutico da compaixão e de quem a pratica.

Conto uma história terrível, cujo impacto conheço por ser filha da ‘vítima’: numa visita à minha mãe, num dos seus muitos internamentos hospitalares, entrei no momento imediatamente a seguir a ter sido posta num cadeirão junto da janela. Nessa altura não podia caminhar nem se deslocava sozinha. Estava completamente condicionada na sua mobilidade e autonomia. Entrei e vi-a chorar. Mais do que aflita de dores, percebi que se sentia magoada, humilhada.

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– O que é que aconteceu?

– Nada, nada, não te preocupes.

Tentou disfarçar, mas mãe é mãe e uma filha percebe sempre que alguma coisa a está a atormentar. Insisti.

– A enfermeira pôs-me todos os comprimidos que tenho que tomar em cima da mesa, mas quando lhe pedi um copo de água, deu-me um copo vazio, apontou para a torneira e foi-se embora.

A torneira estava no canto oposto ao da janela e a minha mãe não podia andar. Nem sequer teria forças para tentar sair da cadeira e arrastar-se para chegar ao cordão da campainha que serve para pedir ajuda. Perversa e inexplicavelmente, a enfermeira deixou os remédios e o copo, virou costas e saiu. Voltou as costas a uma senhora mais velha e doente que ela sabia que precisava dos medicamentos, mas não os podia tomar por lhe ser impossível alcançar a torneira para encher o copo com água.

Não sei quantas vezes nem a quantas pessoas esta enfermeira terá feito o mesmo, mas no minuto a seguir a este episódio eu entrei no quarto. A minha mãe não contou logo, por não gostar de fazer queixas, mas também por saber que a enfermeira poderia vingar-se dela e, durante a noite, fazer ainda pior. Consegui saber o que se tinha passado e pude confrontar a dita enfermeira. Perguntei-lhe se faria o mesmo à sua própria mãe ou avó e, para minha surpresa, ela assumiu a falha e pediu desculpa.

Se agora conto esta história é por ser duplamente eloquente: por um lado, ilustra a total falta de compaixão e os efeitos devastadores que tem em quem está no auge da vulnerabilidade; por outro, o contraste da não-compaixão permite compreender a margem de erro terapêutico que existe em quem se revela incapaz desta atitude, seja por não servir para a função ou por estar sob efeito de um eventual burnout.

Falo da exaustão dos profissionais de saúde por ser uma realidade brutal e porque, neste caso, o pedido de desculpas me pareceu sincero. E aproveito a deixa desta enfermeira, capaz de admitir o erro, para voltar aos bons exemplos e às boas práticas.

A compaixão, o amor, a bondade, a presença terna e securizante não são expressões de fraqueza, mas de força. Nunca é demais dizê-lo e repeti-lo. E todos também nunca seremos demasiados para o reconhecer. A compaixão melhora os resultados nos pacientes e prova que tão importante como tratar as doenças é cuidar das pessoas doentes.

As melhores enfermeiras e os melhores enfermeiros do mundo são todos aqueles que se articulam entre si e com os médicos, os inspiram e lhes transmitem segurança, são os que tratam dos que estão frágeis, os que incentivam os doentes a superarem-se, os que apoiam as famílias e os que garantem os cuidados necessários. Praticar a compaixão, à cabeceira dos doentes, é cuidar deles e tomar as suas lutas como se fossem nossas. Como é que isso se faz sem entrar em colapso físico, mental e emocional? Com profissionalismo e técnicas adequadas, com treino e ajudas, mas também com atenção e supervisão de quem tem o poder de cuidar dos que cuidam.

A compaixão não é uma ideia ‘querida’ nem se traduz apenas em gestos amorosos, note-se. A compaixão, que deve ser a marca de todos os profissionais de saúde, é uma prática, um conjunto de técnicas que, postas em ação, melhoram a vida dos pacientes e, muitas vezes, os salvam do desânimo e da desistência.

Já escrevi neste jornal sobre um livro fundamental, publicado recentemente, com o título “Compassionomics”. Vale a pena lê-lo para perceber a urgência do despertar científico para esta realidade da compaixão em matéria de cuidados de saúde. O livro está carregado de dados, estatísticas, estudos e evidências científicas. É muito interessante ver como os autores evoluíram na investigação sobre a importância da compaixão e como medem e provam os seus efeitos.

Stephen Trzeciak e Anthony Mazzarelli, ambos médicos e investigadores, dedicam o livro a todas as enfermeiras e todos os enfermeiros com quem trabalharam e continuam a trabalhar, justificando a dedicatória pelo facto de se sentirem constantemente incentivados por eles, mas também pela inspiração que eles são para a sua prática clínica diária. É interessante e, porventura, inédito ver médicos dedicarem os seus estudos e escritos aos enfermeiros, mas percebe-se a importância do gesto.

A compaixão não é uma ‘soft science’, muito pelo contrário. O rigor científico com que estes médicos analisaram e mediram os efeitos da compaixão prova que faz toda a diferença nos cuidados médicos e nos resultados que se obtêm nos pacientes. Citam, entre muitos outros, o próprio Darwin, quando ele proclamou que “a compaixão protege as espécies”.

A compaixão, que é intrínseca no ser humano, tem que ser um valor ‘core’ nos serviços de saúde. Todos esperamos uns dos outros essa atitude dinâmica. Sim, porque a diferença entre empatia e compaixão é que uma se traduz em compreender o outro e sofrer com ele, enquanto a outra implica ação. Sempre uma ação que permita aliviar a dor do outro. E é isto que faz com que não seja negociável.

Nunca saberemos quanta dor, quanto sofrimento os outros carregam consigo, mas podemos sempre ficar a saber que a compaixão importa, ajuda a curar e chega a salvar vidas, no sentido moral e emocional. A compaixão não cura cancros nem outras doenças, é certo, mas ajuda os doentes a viverem com as suas doenças e os seus cancros.

Por tudo isto e porque a medicina e a enfermagem não se aplicam apenas a doenças e doentes curáveis, é urgente pensar a compaixão de forma científica. O toque é terapêutico, a proximidade é calorosa, olhar nos olhos transmite mais segurança, o tom de voz pode ser incrivelmente resgatador, a validação dos sintomas é sempre extraordinariamente pacificadora, dar a mão afasta medos terríveis e até a dor mais excruciante se torna suportável quando temos perto alguém que não desiste de nós nem de nos aliviar essa mesma dor.

Os melhores enfermeiros e enfermeiras do mundo sabem isto e muito mais. E é por isso que também eu lhes agradeço e dedico não um livro científico, mas um escrito tão simples como este.