Lembro-me de quando me afligia tudo o que eu ainda não tinha lido. Foi muito antes de começar a escrever. Entrar numa biblioteca grande podia ser aflitivo. A leitora, a uma mesa, com um bloco de notas e as leituras do dia. E, de todos os lados, os fantasmas dos mortos.

Uma biblioteca não é um cemitério, entendi depois. Escrever trouxe-me o gozo daquilo que não conheço, ensinou-me a ler por prazer.

Perseguir o que não se conhece é parecido com admirar nos outros aquilo que é diferente de nós, em vez de andar à procura das coisas e das pessoas com quem nos parecemos. Pelo menos neste aspecto deambular às cegas pela biblioteca assemelhava-se a travar conhecimento com pessoas que ainda não conhecia e que me cativavam porque não se interessariam por mim e por serem muito diferentes de mim. Vale mais andar pela vida movida pela curiosidade por aquilo de que me distingo, confiando na provocação e na interpelação do estrangeiro nas coisas.

Diante dos bustos de homens brancos, sérios e barbudos pelas estantes, talvez parecesse que a estrangeira era eu. Mas fui aprendendo que o estrangeiro coincide com a raiz do desassossego e que os livros do passado me desorientavam na medida em que vinham de fora em relação às minhas convicções. Não encontro forma melhor de alguém se perder enquanto aprende do que deixar-se levar por aquilo que é diferente de si.

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Conheci mais do que um escritor que foge de livrarias. Agora, são também os vivos que afligem, o mar de livros, a pergunta teimosa: para quê escrever, se já existe tudo isto?

Não existe pergunta mais dispensável. Deixarmo-nos ofuscar por ela vem da forma como resistimos a aceitar o prazer como primeira explicação das nossas escolhas. Gostar de escrever deveria bastar para responder àquela pergunta, ou para ignorá-la: ‘Se gostas, continua, e não te questiones’.

É a coisa mais séria, quando se fala dos escritores e de outros artistas. A importância de gostar do que se faz, o gozo pelo gozo.

Conheço vários tratados sobre o prazer da leitura, mas poucos sobre a alegria de escrever. Talvez esta seja uma coisa que os artistas podem ensinar às outras pessoas: o direito ao prazer, que é contíguo ao direito ao nosso corpo, à liberdade de fazer com o corpo o que se quiser.

Convivi com muitas pessoas que não se admitiam gozar a vida ou o que faziam, porque a sua vida era cheia de tristeza e injustiças e porque não achavam que mereciam ser felizes. Algumas dessas pessoas, as mais próximas, muitas vezes mulheres, carregaram às costas o meu gozo de escrever, mas tiveram a bondade de não tentarem transmitir-me a sua corcunda.

A melhor forma de honrar o seu sacrifício é refrearmo-nos de pedir desculpa, ter mais gozo ainda, tentar fazer bem aquilo que se faz. Para alguns, não para Camões, esta será porventura a definição de um parasita. Custa-lhes levar a sério que alguém possa divertir-se tanto a ganhar a vida. O gozo ainda assusta algumas pessoas. É, antes, porém, a definição de alguém que não espera obter com aquilo que faz muito mais do que as alegrias da criação.

Não existe maior perda de tempo do que perguntar ‘para quê fazer isto?’ em relação ao que amamos. Poucas coisas na vida resistem a essa questão implacável, se desatarmos a fazê-la a torto e a direito: ‘Para quê continuar a amar esta mulher?’ ‘Para quê acordar de manhã, vestir-me e sair de casa’? ‘Para quê cuidar dos meus pais?’, ‘Para quê ler este livro?’ ‘Para quê tentar fazer o bem?’

Somos a espécie que faz as perguntas, por isso nos enganamos tanto. Mas talvez não nos caiba a nós perguntar a toda a hora porque fomos escolhidos para a vida que escolhemos.