Infelizmente, passados alguns meses sobre a última vez que aqui escrevi sobre a eutanásia, continuamos a ter uma discussão em torno de argumentos essencialmente jurídicos e toda ela estruturada em eufemismos e sofismas. Sejamos sérios. O que está em causa, podendo ser a despenalização de quem ajuda uma pessoa a morrer, é a consagração do direito a matar em determinados contextos.

Não me interessa, nesta fase, a discussão moral e, muito menos, a religiosa. Já houve quem a tenha feito de forma eloquente e, no meu entender, convincente. Não tenho dúvida que todos os que se têm debruçado sobre o tema, o fizeram com maior profundidade do que eu já fiz e agora volto a fazer. Não acrescentarei nada se repetir o que já foi dito sobre o que é a medicina e a contradição insanável entre cuidar e matar. Tenho por certo que ajudar a morrer, no fundo aquilo para que estamos destinados ao nascer, é ajudar a viver da melhor forma possível até que a vida se esgote. Nem me parece que a discussão se deva cingir aos valores da liberdade individual em contraponto com a imposição de uma vida que já não se queira viver.

Concordo que a discussão não é entre eutanásia ou cuidados paliativos. Nada disso. A previsão do homicídio a pedido do próprio não impede que Portugal tenha mais e melhores cuidados paliativos. O que também não quer dizer que o problema dos cuidados paliativos em Portugal seja a falta de camas em unidades designadas exclusivamente para cuidados em fim de vida, erradamente chamados de paliativos. Entendo que ainda há falhas na formação dos prestadores e na própria prestação de cuidados de saúde orientados para a paliação de sintomas, mas não será por haver carências na assistência paliativa (conceito que deve ultrapassar largamente as necessidades em final de vida) que a eutanásia não poderá ser despenalizada.

Mas é verdade que conferir a um médico a possibilidade de matar um doente é ainda mais bizarro quando não se dá aos médicos todas as ferramentas disponíveis para tratar os doentes. Permitir a eutanásia quando o Estado não garante, a todos e em todo o lado, o acesso aos melhores tratamentos disponíveis é um desaforo. Com a despenalização da eutanásia (ou do suicídio assistido, o que não é bem a mesma coisa) o Ministério da Saúde fica eticamente obrigado a nunca mais impedir ou atrasar a utilização no SNS de um qualquer medicamento, por motivos económicos ou quaisquer outros. Vendo bem, nem os efeitos potencialmente letais de um medicamento o poderá contraindicar. Da mesma forma que o legislador aceita que possa haver quem queira desistir da vida, também terá de aceitar que haja quem queira morrer a lutar, mesmo que isso lhe possa custar a vida. Também não será por ainda faltar legislação sobre eutanásia que haja médicos e instituições que tratem de forma errada doentes terminais, incluindo a imposição de sofrimento desnecessário em razão de cobrar tratamentos inúteis ou desadequados. Nem será por haver eutanásia legal que os doentes passarão a poder optar só por tratamentos dos sintomas.

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Em suma, a despenalização da eutanásia não resolve nenhum problema essencial de saúde pública. A despenalização de um homicídio não é forma de garantir o direito constitucional de proteção da saúde. A eutanásia não é um assunto do Ministério da Saúde. Não pode ser praticada em instituições de saúde, como os dois maiores grupos privados da área já reconheceram. É aviltante que a sorridente ministra da Saúde que temos não se pronuncie sobre o tema, o que representa cobardia política e moral. As questões do homicídio legal são da justiça, como a senhora deputada Isabel Moreira tão bravamente as tem colocado. Ou será que os hospitais do SNS também serão julgados, no portal da transparência, pelo número de eutanásias com sucesso ou pelo tempo máximo garantido de minutos até morrer. Será uma revolução interessante, colocar o acréscimo de mortalidade na lista dos indicadores positivos. No fim do dia quem protegerá os que preferirem viver?

A regulamentação da eutanásia e do suicídio assistido, como tem sido feito e se pretende fazer em Portugal, cria mais problemas a toda a sociedade e aos doentes do que resolve casos pontuais. Sou muito sensível às situações em que a morte se avizinha e ao horror do sofrimento físico. Tenho mais de 30 anos de lidar com doenças incuráveis. Afirmo, sem dúvida, que a legalização da eutanásia, nas suas múltiplas formas, nem sequer é necessária. A medicina já tem meios suficientes e adequados para ajudar a morrer, sem precisar desta legislação.

Tão pouco me parece razoável que o debate se faça sem que se considerem problemas que os legisladores querem escamotear. Sou intrinsecamente contra a eutanásia também por razões de natureza prática, aquelas coisas comezinhas de que toda a gente se esquece. Vejamos matérias práticas. Algumas já foram afloradas previamente. Mesmo que o exercício do direito de praticar homicídio, sem que se seja por isso penalizado, possa ser a mera cumplicidade pelo fornecimento do instrumento que garanta a consumação do suicídio, pode até acontecer que o método disponibilizado não consiga o sucesso da intenção. Se o prospetivo “eutanasiável“ sofrer danos em consequência do que lhe for administrado, sem que a morte sobrevenha, estaremos em presença de má prática médica? Há casos bem relatados de processo de morte cruelmente prolongado com recurso à injeção letal nos EUA. O suicídio assistido nem sempre funciona e há um potencial significativo de sofrimento induzido pelas substâncias administradas. Quem fiscalizará os coktails mortais? O Infarmed, por certo atento a garantir a segurança dos medicamentos, necessitará de todo um novo enquadramento legal para assegurar a qualidade das substâncias letais. A arte de matar bem, garantir a boa morte, obrigará a que se abra todo um novo campo de investigação que é eticamente inaceitável. Logo, por enquanto, quem pratica a eutanásia ou ajuda ao suicídio fá-lo sem nenhum tipo de garantia de não o fazer de forma errada. Seria interessante assistir às comissões de farmácia permitirem o uso de medicamentos, indicados para tirar a dor ou repor iões, para a finalidade de matarem o doente, ao mesmo tempo que proibirem o recurso a um medicamento contra o cancro, se o uso proposto for fora da indicação aprovada. Uma coisa é certa, ética à parte, logo que a eutanásia é legalizada os preços dos “medicamentos” usados para matar são sujeitos a aumentos substanciais.

Mas devemos ir à raiz do problema. Quem define o que é atroz e insuportável? Certamente o próprio, mas as propostas de lei remetem essa responsabilidade para um juízo médico que é tecnicamente impossível. Que dizer aos doentes que desde logo, na história natural da sua doença, dolorosa e incurável, entenderem que não se querem tratar? Propor-lhes que acabem com a sua vida e, consequentemente, poupar milhões de euros em tratamentos que, bem vistas as coisas, seriam apenas paliativos e nunca curativos? E, regressando a argumentos anteriores, como avaliar a disposição mental do suicida? Se o sofrimento atroz e insuportável for uma depressão, seja ela primária ou secundária a outra patologia, aceita-se a disposição suicida ou trata-se aquele que sofre de forma atroz e insuportável? Tratar quem sofre, não é o fito da medicina? E porque delegar apenas em médicos todo este processo da indústria da morte a pedido? Não poderiam outros profissionais de saúde, enfermeiros ou farmacêuticos, prestar-se a matar? Imagino que não aceitem tão nefasta tarefa. Delegação de competências é que não será, porque os médicos não podem aceitar que no seu rol de tarefas passe a constar a administração de uma substância deliberadamente dada com a intenção de matar.

O argumento de que as experiências internacionais resolvem as questões anteriores não colhe, nem procede. As experiências internacionais (deixo para os leitores a maçada de procurarem os relatos e as publicações) contam-nos horrores de doentes mentais abatidos, sem dó nem piedade, de vontades apressadamente ajuizadas, de crianças assassinadas (há países onde os limites de idade não se restringem a maiores e nada nos garante que, uma vez aberta a porta, em Portugal não se passe da idade legal de 18 para os 16, depois para os 6 e assim sucessivamente, até deixar que os pais decidam pela vida dos seus filhos deficientes logo à nascença). Há uma cultura de abandono onde a vontade de morrer se sobrepõe à obrigação de garantir uma vida melhor para todos, começando pelos que menos saúde têm.

Não defendo o referendo sobre o tema da eutanásia. Tenho honestidade intelectual suficiente para perceber que a pergunta não é factível. A maioria dos portugueses não compreenderia uma pergunta que não fosse clara, inequívoca e abrangente. O processo de referendo será sempre eivado de má informação. Temo que aqueles que agora pedem o referendo o entendam como a forma, a única que resta, para impedir o disparate legislativo que a Assembleia se prepara para cometer. Os referendos são sempre perigosos e nunca se deve patrocinar, em matéria referendável, uma questão cuja resposta seja incerta. Lembram-se do Brexit?

O problema maior é o processo legislativo estar a decorrer de forma errada. As propostas de lei são más, mal elaboradas, excessivamente gongóricas e, no fim, servirão para que o legislador fique desresponsabilizado pelo que vier a acontecer. A terminologia tem erros, há confusões, há omissões e há muita matéria que carecerá de complexa e exaustiva regulamentação. Por outro lado, entendo que é um erro político permitir que haja liberdade de voto para cada deputado. Vou mais longe, é uma impostura que nos impõem. Nenhum de nós votou numa pessoa em função das suas opiniões morais, religiosas ou técnico-profissionais. Votámos em partidos que, na sua maioria, foram omissos quanto a este tema.

Aceitando as devidas diferenças, é estranhíssimo que os mesmos que proibiram o abate de animais nos canis e gatis municipais queiram agora aprovar a autorização para matar pessoas que, não raras vezes, se sentirão mais abandonadas do que cães vadios. Estranho, muito estranho, que não se atrevam a formular legislação sobre a quarentena, nem que fosse para pedir ao Tribunal Constitucional que se pronunciasse, sendo que o isolamento compulsivo de doentes ou de indivíduos potencialmente infetantes é uma medida que poderá vir a ser necessária para salvar muitas vidas. E, no entanto, tão interessados que estão em despenalizar a eutanásia. Ainda mais estranho que não se apressem a mudar um artigo na Lei da Procriação Medicamente Assistida, introduzir uma alínea, para permitir que uma viúva possa usar o esperma que o seu marido doou antes de, depois de uma longa e árdua luta, infelizmente falecer. É caso para dizer, apenas constatando os factos, que o Parlamento de Portugal está mais interessado em permitir a morte dos seus eleitores do que promover novas vidas. É triste.