Há emoções e há sentimentos. Uns e outros são conteúdos mentais, claro. As emoções são reflexas. E os sentimentos o resultado mais elaborado das emoções. E, depois, há sentimentos alinhados e articulados uns com os outros numa consensualidade que os afina. Como uma coluna vertebral que os liga e movimenta Assim é o amor.

Amor é conhecimento, entusiasmo e humildade. É beleza, pluralidade e ligação. O caminho para a verdade. Ódio é obscurantismo, mortificação e arrogância. É conspurcação, unicidade e clivagem. É estupidez. A caminho da loucura.

Mas, não, não é verdade que se passe muito facilmente do amor ao ódio. Mesmo que se sinta um ódio, súbito e prepotente, em consequência duma dor aguda e avassaladora. Sentir ódio e cultivar o ódio são coisas diferentes. Por isso mesmo, baseados na diferença entre sentir ódio e cultivá-lo, afirmar-se que somos todos maus é o populismo a que só quem é mau recorre para iludir e conspurcar a bondade e a liberdade de pensar de que os “bons” são capazes e eles não.

O ódio é estúpido! Resulta de ressentimentos que se transformaram em rancor. De raiva contida que marinou até se transformar em violência. De desamparos (cumulativos) que se converteram em inveja. E de experiências de humilhação que galgaram as margens e se transfiguraram numa voracidade insaciável e destrutiva. Ninguém chega ao ódio sendo bem amado. Ninguém se deixa carcomido por ele depois de ser alimentado por empatia e por bondade.

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O ódio é uma coluna vertebral que se parte. A estupidez do ódio manifesta-se na forma como ele se vinga, indiscriminadamente, em todas as pessoas de todo o mal que só alguns acabaram por fazer. Desconfiando-se, sobretudo. Como se todos os que se sentem perseguidos por dentro, por via do ódio que cultivam, exorcizassem os vultos que os corroem, em cada um dos que perseguem. Sobretudo quando assumem que o mal são os outros. Que é uma forma sinuosa de lhes fazer mal em nome do “bem”. Que, na verdade, representa a tentativa de aniquilar todas as memórias de dor e os seus vestígios que os atormentam e desmoronam. Ódio é morte e esquecimento. Amor é vida. É memória. E é futuro.

O ódio é estúpido porque, para mais, é cego. Porque transforma a dor em vingança. E, dessa forma, compromete todos os movimentos de resgate que, assim, são destruídos em estado nascente.

O ódio é doente. Ninguém nasce com ódio. Em caso de dúvida, deem um salto a uma unidade de cuidados intensivos neonatais e perscrutem em cada bebé um laivo, que seja, que vos pareça ódio. Mas compreender o ódio não significa condescender com ele. O ódio é — sempre! — um atentado à humanidade. Do ponto de vista das relações sociais, por mais que o ódio intimide e paralise, aceitá-lo é banalizá-lo. E deixarmo-nos corromper por ele.

O que assusta nos tempos que correm é que, das redes sociais para o espaço público, o discurso do ódio esteja a sair da clandestinidade. E, por obra de alguns, consumamos o ódio que sobre todos nós eles destilam. Mas o que assusta mais, ainda, é que a versão liofilizada do ódio — a maldade — ande por aí. Como um “novo normal”. Sem que pareçamos perceber que o ódio que nos levam a sentir pode ser o desafio que nos encaminhe a não o cultivar. “A” interpelação que nos pode trazer para a escolha da bondade, da gratidão e da verdade. Assim não façamos por não o pensar.

O equívoco de quem fala de discurso do ódio talvez resida no pressuposto que as palavras ditas, por mais maldade que transportem, são “só” palavras. E não é assim. O discurso do ódio é, sempre, um acto. Voluntário e intencional. Que traduz, sobretudo, a indiferença diante da dor ou do sofrimento de quem é magoado. Ou que é maltratado de forma repetida. Sem quaisquer movimentos de reparação ou experiências de culpa. O que faz do discurso do ódio uma ofensa grave. Um crime. Contra os direitos de personalidade. E contra a Humanidade.

O que inquieta no discurso do ódio não será tanto a forma como ele se faz emboscado. Dum jeito conspirativo. Ou quando — cobardemente — se entrincheira em “princípios”, “causas” ou atitudes de circunstância. O que inquieta é o modo, ainda assim, condescendente como lidamos com ele. Fazer por ignorá-lo é assumir benevolência ou docilidade perante quem maltrata e quem destrói. Como se dessa forma fôssemos poupados à sua maldade. Que é uma forma de negarmos o auxílio a quem é maltratado. O que nos torna cúmplices com o ódio. Por mais que não nos reconheçamos nele. E por mais que pactuar com ele seja renunciarmos a pensar.

O discurso do ódio pretende, pela intimidação, transformarmo-nos em imbecis. Mesmo quando se insinua que o mal está a chegar. Quando alguém o faz, repetidamente, isso serve para nos dessensibilizar e distrair para a sua presença. Como se com isso, qual “Pedro e o Lobo”, fôssemos ficando indiferentes para a sua chegada.

As más pessoas não são só mal educadas. São-no, também, claro. Porque a urbanidade é uma atitude que concilia o plural e o singular, o bem e o mal que o discurso do ódio não tolera. As más pessoas são sempre roubadoras da luz. A maldade é sempre voraz. E hegemónica. E pretende tiranizar ou destruir todos aqueles que parecem ser ameaçadores pelas diferenças que manifestam. Pela forma como são esclarecidos. Pela bondade que transmitem. Ou pelas convicções que não escondem.

É por isso que se estranha que se fale e fale e fale de discurso do ódio. Sem que se dê conta que quanto mais falamos dele mais ficamos indiferentes para a sua chegada. E menos reagimos à maldade. Duvidam duma nova pandemia? Aí a têm!