Chama-se Salazar – O Ditador que se recusa a morrer, é de Tom Gallagher, historiador inglês e professor na Universidade de Bradford, e vem juntar-se às muitas dezenas de livros que foram sendo publicados no meio século decorrido desde a morte do “ditador que se recusa a morrer”, em 27 de Julho de 1970.
Longe das diatribes rancorosas ou ditirambos nativos, Gallagher pega no homem e na obra com a serenidade, o equilíbrio e a distância de que talvez só um estrangeiro seja capaz e escreve uma biografia que, para nós, ainda contemporâneos da história, não trará muitas novidades, mas que ganha actualidade e relevância pelo momento da Europa e do mundo em que é escrita.
Não se trata de saudosismo deslocado, de um “Mandai chamar Salazar” para realizar o sonho dos nossos também já ultrapassados taxistas, mas da importância de revisitar um protagonista moldado por circunstâncias históricas diferentes mas próximas de escolhas e recusas relevantes para os tempos que agora vivemos.
Salazar e os “populistas”
Conversei com Gallagher, quando por cá andou em trabalho de investigação. E o que achei interessante no seu projecto foi, precisamente, o facto de partir da actualidade – das novas e velhas direitas políticas, das radicais às conservadoras. E de ver nas marcas populistas, de massas identitárias, das actuais “direitas radicais” paralelos com os movimentos fascistas do tempo de Salazar. E também diferenças.
É que, ao contrário dos autoritarismos conservadores e do fascismo, as “novas direitas” populares não apresentam uma alternativa à democracia e à soberania popular, mas trazem implicitamente, pela adesão das pessoas comuns, uma radicalidade que vai assustando, com razão ou sem ela, a classe política e intelectual do “sistema”. Um sistema que inclui a “direita sistémica” – os conservadores, os liberais, os democratas cristãos –, que se terá deixado confinar nalgum elitismo.
O que Tom Gallagher vê no regime de Salazar é uma solução encontrada nos anos 30 e prolongada e adaptada até ao final dos anos 60. E a solução salazarista para a crise situa-se algures entre o que então eram os movimentos fascistas e os seus partidos revolucionários, inspirados numa ideologia totalitária e estatocrática, e as direitas clássicas, oligárquicas, que estavam a ficar fora da História.
Hoje, a generalidade dos partidos ditos populistas é firmemente partidária de eleições, da soberania e do voto popular. Bem pelo contrário, é das elites ditas progressistas, globalizantes e globalizadas, que surgem reservas à vontade popular e soam gritos de alarme sobre os perigos da “democracia iliberal” que, eleita pelo povo, governa em Budapeste e Varsóvia. E logo na introdução, Gallagher tem o cuidado de assinalar esta contradição:
“Salazar opunha-se a partidos de qualquer espécie, argumentando que eram falsos arautos do progresso. Preferia, em vez disso, investir as suas esperanças em elites que garantiriam um governo impessoal dedicado à causa nacional. Paradoxalmente, a desconfiança de Salazar nas suas elites, a sua crença no governo dos especialistas e a sua disposição a patrocinar a censura a fim de controlar o livre fluxo das ideias gozam agora de maior favor entre os globalistas da esquerda que entre os nacionalistas da direita.”
Um Português pessimista
Tudo acaba também por depender do tempo circunstanciado: o liberalismo entrou em Portugal com a brutalidade das tropas napoleónicas; mas foi retomado como reacção nacionalista e protagonizado à esquerda pelos magistrados do Sinédrio portuense que reagiam contra a governação de Dom João VI a partir do Brasil e a sujeição aos ingleses de Beresford.
Liberalismo que triunfou na Guerra Civil, também pela incapacidade estratégica dos comandos militares miguelistas que, estando embora em superioridade numérica, se mostraram incapazes de tomar o Porto. E o liberalismo vitorioso governou no século XIX, deixando uma crítica amarga no exílio interior de Herculano, no pessimismo de Oliveira Martins (contado no Portugal Contemporâneo), na novela camiliana e na sátira de Eça de Queirós. Só com o bipartidarismo ordeiro da Regeneração – uma construção política de Fontes Pereira de Melo, que, como observou Borges de Macedo, era mais que um tecnocrata – conseguiu-se equilibrar o liberalismo português com algum progresso e fomento industriais e de obras públicas.
Mas este rotativismo liberal não durou muito. Acabou com o agudizar da conflitualidade e com a crise do Ultimato, que os republicanos usaram para uma campanha nacionalista contra a Dinastia, que, segundo eles, não defendia as colónias ou o Império. Fragmentação partidária, violência, solução kaiseriana com João Franco, regicídio, República, a tal “balbúrdia sanguinolenta”, em que os Democráticos, primeiro com Afonso Costa e depois com António Maria da Silva, governaram em quase ditadura, manipulando as urnas e a rua.
Não resisto a citar as palavras com que Maria de Fátima Bonifácio terminou a sua comunicação de abertura no colóquio do MEL, na terça-feira passada:
“A República não foi propriamente um regime, foi um estado de coisas engenhado para manter o poder do Sr. Afonso Costa. Depois de um século liberal desgraçado; depois de uma República em permanente revolução ou turbulência, Fernando Pessoa explica por que motivo o País estava a pedir um Salazar: ‘Depois dos Afonsos Costas, dos Cunhas Leais, de toda a eloquência parlamentar sem ontem nem amanhã na inteligência nem na vontade, a sua [de Salazar] simplicidade dura e fria pareceu qualquer coisa de bronze e de fundamental’.”
Pessoa apanhou a essência da crise nacional e da solução encontrada para a crise. O esgotamento das oligarquias, ou das falsas elites, manipuladoras do regime liberal democrático e o vazio programático das espadas dos capitães e tenentes de Maio traziam para o poder o tecnocrata das Finanças, que assim se tornava redentor da pátria e até salvador da República.
Não tão inocentemente como contariam depois as lendas oficiais: Salazar vira que o poder estava nas baixas patentes militares e era para elas que pregava, mesmo que discretamente, em artigos de jornal e conferências.
Fascismo, Ideologia e Regime
Entre outros enigmas e discussões, Salazar e o Estado Novo desencadeiam inevitavelmente o mais clássico: Qual a natureza do seu Regime – Fascista? Não-fascista? Autoritário-conservador? Nacionalista-autoritário e conservador? É uma discussão que tem quase cem anos, até porque, quando o Estado Novo chegou, o fascismo já existia desde 1919 e estava no poder desde 1922.
Com o fascismo-ideologia ou com o fascismo-movimento, o regime de Salazar não tinha quase nada em comum, tirando, pela positiva, o nacionalismo e, pela negativa, o antiparlamentarismo e anticomunismo. De resto, o fascismo era um movimento nietzschiano, revolucionário, partidocrático, que queria até construir “um homem novo”, o “homem fascista”, índole e programa que estavam nos antípodas de Salazar e do salazarismo. Mas Manuel de Lucena abriu aqui uma alínea subtil: certamente que o salazarismo não teria quase nada que ver com o fascismo como ideologia, como movimento; mas não se aproximaria Salazar do fascismo-regime? E lembrava que Mussolini, ao pactuar e negociar com as direitas conservadoras, com a monarquia, com o Exército, com a Indústria, com o Vaticano, acabara por implantar um regime que se afastava do programa fascista inicial – nacionalista revolucionário, socialista, anticlerical, pró-Reforma Agrária (tudo parte projecto dos Fasci de Combattimento). E é pelas cedências de Mussolini, pela aproximação pragmática do Duce aos conservadores, aos católicos, aos militares que, Salazar, o conservador, o católico, o chefe de um regime que resultara de um pacto com o exército da Ditadura Militar, se aproximava do regime fascista. Do regime e não do movimento.
Poderá então concluir-se que, por negociar o poder cedendo na pureza ideológica e na integridade do projecto, o regime fascista de Mussolini nunca terá sido fascista? E que nunca terão sido comunistas o comunismo soviético de Estaline ou de Kruschev? Talvez. Mao tentaria não ceder na pureza ideológica, causando grandes desastres, mas os seus sucessores acabariam por fazer o capitalismo de direcção central para tirar a China da menoridade das potências e o povo da miséria.
O Estado Novo foi, ideologicamente, um regime nacional-autoritário, inspirado pelo conservadorismo nacionalista e pelo catolicismo social. Salazar não era um compendiador de teorias nem um receptáculo de influências doutrinárias: era um realista pragmático, que governava muito em função de evitar o que, na experiência de um século de liberalismo partidário, achava serem os vícios do sistema e das instituições. Daí a importância dos antis – anti-partidarismo, anti-comunismo, desconfiança das grandes ideologias humanitárias e internacionalistas.
E depois, uma construção pela solução de problemas: finanças em primeiro lugar, obras públicas, combate ao analfabetismo, arranque industrial nos anos 50 e persistência de um ruralismo encorajado e valorizado, não pelo “provincianismo” de que o acusam os provincianos, mas por ver no campo a reserva estratégica dos sentimentos conservadores e patrióticos do povo.
Gallagher estudou Salazar sem apologias nostálgicas, valorizando o seu percurso e as suas escolhas mas sem ver nele, como muitos conservadores europeus, o convencional “Sábio do Ocidente”. E percorre os anos do regime, relatando com serenidade e objectividade as grandes etapas: a restauração das Finanças, a condução da diplomacia na década dos conflitos – guerra de Espanha e Segunda Guerra Mundial –, a adaptação ao mundo da Guerra Fria, o arranque desenvolvimentista, a defesa do Império no mundo pós-imperial dos impérios invisíveis.
É uma biografia séria, escrupulosa, bem escrita, sem apologias mas também sem rancores, feita com uma objectividade de entomologista que se aproxima de uma cultura, de um povo e de uma figura estranhos e singulares. E hoje mais singular ainda, pelo contraste dos seus valores, princípios e estilo com os dos que vieram a suceder-lhe.
A tradução, impecável como sempre, é do Miguel Freitas da Costa.
Salazar – O Ditador que se Recusa a Morrer
Tom Gallagher
Publicações Dom Quixote
Data de edição: Maio de 2021