Enquanto prossegue tragicomédia grega, o último debate sobre o Estado da Nação ocorreu há poucas semanas e esta legislatura, em que Portugal saiu da situação de falência na qual o Sócrates nos deixou em 2011, apresta-se a terminar. É preciso começar por dizer duas coisas: primeiro, ninguém acreditaria há quatro anos que o país estaria hoje na situação de alívio em que se encontra; segundo, há cerca de dois anos, a catástrofe iminente provocada pela «irrevogável demissão» do líder do CDS-PP, com receio de não ser capaz de ultrapassar as dificuldades do memorando, ia deitando tudo a perder. Salvou-nos o sangue frio do primeiro-ministro Passos Coelho e a firmeza do Presidente da República.
Neste momento, fora da oposição parlamentar e das carpideiras de serviço, toda a gente – incluindo o novo líder do PS, num dia em que lhe fugiu a boca para verdade – reconhece que Portugal está infinitamente melhor do que jamais imaginaríamos há quatro anos e mesmo há dois, melhorando em muitos casos a situação de 2011 e confirmando algumas reformas para ficar. Independentemente do que se disse, Passos Coelho não foi «além da troika»; a crise, sim, é que foi além da troika.
Foi isso que aconteceu com o sistema bancário, desde o BPN debitado por Sócrates aos contribuintes portugueses até ao BES que o actual primeiro-ministro se recusou a «salvar» com o nosso dinheiro, passando pelos outros bancos intervencionados pela «troika», como uma Caixa Geral de Depósitos que ainda está longe de ter saldado os negócios em que se meteu e um BCP virtualmente falido por onde circulou o inevitável Armando Vara, agora associado ao caso Sócrates… Tudo isto o país conseguiu absorver enquanto os multibancos se mantinham abertos.
Os piores indicadores do período mais crítico do ajustamento já melhoraram sensivelmente, apontando no sentido de uma enorme resiliência por parte da grande maioria da população. Tendo presente que a dívida pública portuguesa já duplicara de 50% para 100% entre 2000 e 2010, mostrando o que estava para vir, o desemprego – considerado como o pior legado da crise – passara no mesmo período de 4% para 11%. Entre 2007 e a assinatura do memorando, o número de desempregados passou de cerca de 450 mil para 700 mil; nos dois anos seguintes chegou a 850 mil, atingindo a percentagem inédita em Portugal de 16%, mas no primeiro trimestre do corrente ano já baixara para menos de 14%, correspondendo a cerca de 725 mil desempregados. Em suma, desde a chegada da «troika» até hoje, o desemprego registado não terá aumentado mais de 20 mil pessoas.
Inversamente, segundo o Professor João Duque, acabaram por ser destruídos mais empregos no tempo de Sócrates do que durante o actual governo. Previsivelmente, se a percentagem de desempregados não é mais elevada, ficando muito abaixo dos outros países do sul da Europa, isso deve-se à emigração, comprovando o recurso a essa válvula de segurança secular do sistema económico português, bem como a outras soluções vindas da nossa resiliência histórica, tal como a «economia subterrânea», que já disparara durante a bancarrota de 1983-85.
Abundam os números atirados ao ar acerca da emigração mas, para poder compará-la com as vagas anteriores, é preciso obter dados confiáveis sobre o tipo de emigrantes temporários ou permanentes; os destinos, pois a emigração sazonal na UE não é a mesma coisa que as antigas partidas sem regresso; e, finalmente, no que diz respeito à chamada emigração qualificada, tornou-se evidente que esta se deve em grande parte à desadequação entre as valências académicas e o mercado de trabalho, nomeadamente no sector privado, como eu próprio já tentei mostrar.
Quem quiser tomar consciência daquilo que nos reserva a demografia nacional, agravada pelo regresso dos imigrantes aos seus países, é só perceber que corremos o risco de não haver crianças para tantos professores. Tipicamente, o aumento demagógico da escolaridade obrigatória para 18 anos no final do regime socrático, quando metade dos rapazes já não conseguia acabar o 9.º aos 16 anos, serviu apenas para manter postos de trabalho para um professorado que constitui o maior sector do emprego estatal e que resultou das disfunções do sistema de ensino em vigor…
Em compensação, no que diz respeito ao estado efectivo da Nação, os dois símbolos do consumismo nacional – o tal consumo incentivado pelo Estado que nos salvaria da recessão económica – estão a recuperar os níveis anteriores à intervenção da troika: os automóveis fatalmente e, mais atrás, as casas novas, enquanto a banca voltou a facilitar os empréstimos ao consumo, como é do conhecimento geral. Entretanto, a carga fiscal aumentou para 34% do PIB, continuando a ser das mais baixas da UE (39%), sobretudo a nível dos impostos directos. Na Dinamarca, para sustentar o “estado social”, a carga fiscal é superior a 50% do PIB, mas os nossos socialistas parecem acreditar na multiplicação dos euros… E é irónico que M.ª de Lurdes Rodrigues e Pedro Adão e Silva se queixem de a «redução da despesa ter sido maior que o aumento dos impostos» (Público, 15/6)! Então como é que havia de ser? Mais despesa com menos impostos? Com que dinheiro? Voltámos ao Sócrates?
Mais importante, contudo, é que este percurso se fez com uma redução da desigualdade económica no país, tendo diminuído a diferença entre as famílias mais ricas e mais pobres. Ao contrário do alarmismo em volta da «pobreza relativa», que poderá ter aumentado devido aos cortes assistenciais, a verdade é que Portugal tem hoje um coeficiente de Gini dos melhores de sempre, abaixo de 0,34, idêntico ao do Reino Unido e melhor do que os USA (0,39), embora pior do que os países mais igualitários do mundo, como a Alemanha e a França (abaixo de 0,30). Este é o estado presente da nação. Fica muito por fazer e a política eleitoral às vezes é ingrata. Cuidado, não andemos para trás!