Discernir uma evangelização que não seja colonização, eis o desafio lançado pelo Papa no Sínodo da Amazónia. A atualidade deste problema vem a propósito do sucesso expansionista dos evangélicos no Brasil, constituídos por uma multiplicidade de congregações religiosas que hoje mais do que nunca, empurram o rolo compressor do progresso.

As forças políticas deste modelo de expansão neocolonial, fortemente representadas no aparelho de estado, caracterizam-se no terreno pela progressiva fragmentação do espaço social numa lógica paroquialista, e uniformização do espaço individual a partir da obediência a certos códigos morais, como parte de um conjunto de soluções emergentes de lidar com pressões económicas a partir do religioso.

A possibilidade da Igreja Católica se demarcar deste padrão não é óbvia, tendo sempre existido divergências no seio da Igreja sobre o modelo de evangelização a seguir. A criação de um Observatório Pastoral Socioambiental, envolvendo intervenientes dos nove países da Pan-Amazónica e representantes dos povos indígenas, não vai parar a atual dinâmica de devastação, mas pode ser um passo no caminho da cooperação transnacional, tão necessária na região.

Giotto, 1296-1297: detalhe do afresco “Pregação de São Francisco aos Pássaros”

Neste contexto, a Igreja não é mero observador passivo ou elemento neutro, estando sujeita a influências contraditórias, que configuram em si mesma um ator político-ecológico. Nesse plano de responsabilidade, o seu problema essencial está na necessidade de formular um novo horizonte normativo que permita colocar a sua agência e suas pautas em oposição inequívoca à situação de destruição, saque e violência que se vive hoje na Amazónia.

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Esta condição implica uma transformação profunda do exercício do poder da Igreja, fundamentada na necessidade de mobilizar os meios humanos e materiais à sua disposição em torno de um novo paradigma de regeneração ecológica integral — cultivando igualmente a terra e o coração dos homens, como parte integrante de um renovado empenho na educação para novos padrões de comportamento humano, mais compatíveis com os nossos suportes de vida.

Um esforço missionário em torno deste desígnio só pode ser efetivo através da “capacidade humana não apenas de agir, mas de agir em concerto”¹. Nesta disposição, o poder da Igreja é fundamentalmente intransitivo, porque reside na capacidade de transformação interior de cada um. É o poder de agir com o outro, em oposição ao poder sobre o outro: o reconhecimento da universalidade na individualidade, em vez da imposição do universal no individual.

O evangelho assim entendido é melhor revelado no exemplo da ação consciente da natureza de que somos parte, do que na pregação do Homem como jóia da coroa da criação.

Nestes dilemas onde o feminino parece ainda não ter encontrado o seu lugar, a Terra é por vezes designada de mãe, outras vezes de irmã, o que não deixa de refletir a tensão filosófica que persiste entre as teologias judaico-cristãs e as cosmogonias ameríndias. Mas não será difícil concordar que essa fina pele viva a que também chamam Gaia, é uma liga bem mais antiga do que qualquer cisma, que por essa simples evidência merece todo o empenho na sua salvação.

A cultura de proximidade que Francisco nos ensina pode facilitar este diálogo entre diferentes pontos de vista sobre a Existência, nos vários planos em que esta pode ser pensada. Neste sentido amplo, temos muito a aprender com um evangelho onde a ética e as ciências, a história e a arte, a poesia e a música, sejam meios de interação e integração entre diferentes mundos, na construção de uma perspetiva de reconhecimento mútuo na qual todos possamos ser convidados a transformar o modo como nos vemos a nós próprios.

¹ Harendt, Hannah 1970. On Violence. Harcourt Brace. New York.