Estou a terminar a leitura da tetralogia Lucy Barton, de Elizabeth Strout, e há um pormenor no último livro, ‘Lucy by the Sea’, revelador de um dos muitos dilemas dos nossos dias. Lucy é uma mulher que veio de um meio social muito pobre e de uma família disfuncional, mas que singrou enquanto escritora. Vive em Nova Iorque, em Manhattan, e a percepção que tem do mundo actual é o de uma mulher cosmopolita. Em Março de 2020, com a pandemia, vai com o ex-marido para uma casa frente ao mar, no Maine, onde passam o confinamento. Num dia presta-se a fazer apoio social, embalar pacotes com alimentos para quem destes precisa, e a trabalhar com ela conhece uma mulher de conversa acessível e genuína. É uma mulher que vive sozinha, tem o seu emprego e medo de ficar emocionalmente desequilibrada em virtude do seu isolamento social. Lucy apercebe-se também que é uma apoiante de Trump (estamos em Outubro de 2020) e o que a surpreende é o quanto isso não a afasta da dita mulher. Que é possível apoiar Trump e ser uma boa pessoa. Não que Lucy julgasse o contrário, mas não deixa de registar esse facto contra a narrativa de qualquer um dos lados que o outro é demoníaco ou ignorante. De regresso a casa comenta a sua conclusão com o ex-marido que não se mostra surpreendido. Segundo ele pessoas como as que Lucy conheceu sofrem e sentem-se traídas. Perderam poder de compra, a sua identidade é denunciada como egoísta e retrógrada e ninguém as ouve.
‘Lucy by the Sea’ é, para mim, o melhor dos quatro livros e está escrito daquela forma simples e linear que transmite a complexidade dos factos da vida. Há nele muito mais do que este episódio que fui buscar porque ilustra um facto político e relevante para os nossos dias futuros. As sociedades ocidentais estão divididas, fruto de uma revolução cultural e educacional alimentada e ampliada pela internet e pelas plataformas digitais. Há os que estão dentro dessa revolução e os que estão fora. E, como geralmente sucede nestes casos de profunda transformação social, os que ganham desprezam os que perdem. O que sucede hoje em dia, além das redes sociais tornarem tudo isso mais visível, é que os que ganham se encontram culturalmente e a nível de identidade desligados dos que ficam para trás. Não os divide apenas o dinheiro, mas a valorização que fazem dos factos da vida.
A democracia tem imensos defeitos e um deles é o tempo que leva a decidir. Mas tem vantagens. Uma é a análise cuidada antes da decisão e outra a correcção possível das deliberações erradas. Para tal é necessário escutar, o que requer não tirar conclusões pré-concebidas. Ao contrário do que se diz muitas vezes, um político não deve dizer o que as pessoas querem ouvir. Isso é o que faz um populista. Um político interessado deve escutá-las, ouvi-las, compreendê-las e, depois disso, apresentar as suas propostas. Propor um caminho e convencer o eleitorado. A isto chama-se democracia e é o que está a falhar no Ocidente, onde quem não é ouvido grita e vota com raiva. O voto em Trump, como no Brexit ou em Marine Le Pen, e por cá no Chega, é um voto de protesto que deve ser entendido como isso mesmo, um protesto de pessoas irritadas e com razão. Umas porque estão fora do Estado e das grandes empresas e outras porque se vêem sem resposta dos serviços públicos, nomeadamente os de saúde. A solução que escolhem não é a melhor (pelo contrário, é pior) mas a verdade é que quando alertaram para as consequências que vivemos hoje em dia ninguém as ouviu. Ninguém quis saber. Se não quiseram saber quando estavam certas por que motivo é de esperar que se preocupem com o que se pensa das suas decisões? A verdade é que é a escolha errada que tem chamado a atenção dos que não quiseram saber. Foi o susto de Trump na presidência e o risco do seu regresso, é o receio de vitória de Le Pen e o crescimento do Chega em Portugal que está a fazer com que olhemos para os erros cometidos. A solução que este eleitorado escolhe não é a melhor e não temos de concordar com ela, nem sequer incluir e contar com os partidos em que vota como soluções de governo. Mas devemos escutar estes cidadãos, perceber os seus problemas e as suas queixas. Procurar e propor soluções para esses problemas e para essas queixas. Fechar os olhos ou olhar para o lado nunca foi e não pode ser a resposta.
O exemplo de Lucy Barton é simples bom senso. Pode parecer pouco, mas foi o que permitiu o equilíbrio necessário para que a ordem imperasse na Europa depois das guerras napoleónicas e durante o século XIX, bem como o Velho Continente ressurgisse das cinzas após a Segunda Guerra Mundial. Com sensatez, objectividade e pragmatismo, a solução está sempre lá à nossa espera.