O crescimento explosivo da extrema-direita tem intrigado políticos e analistas em todo o mundo. Como é que ideias outrora marginalizadas e estigmatizadas conseguiram emergir com tanta força no cenário político? No seu novo livro, O Fim da Vergonha: Como a direita radical se normalizou, Vicente Valentim desenvolve um modelo teórico que nos ajuda a perceber melhor este fenómeno.

Para compreender o modelo desenvolvido e a sua dinâmica, é crucial destacar duas ideias fundamentais: as normas sociais e as preferências falsificadas. As normas sociais referem-se aos costumes, ideias, crenças e comportamentos que a sociedade em geral considera aceitáveis. A noção de preferências falsificadas, conforme desenvolvida por Timur Kuran, sugere que os indivíduos, por vezes, ocultam as suas verdadeiras preferências para se sentirem parte da comunidade e evitarem repercussões sociais. Aplicada ao cenário político, esta ideia indica que pode haver uma perceção distorcida sobre o que os eleitores realmente pensam e o verdadeiro apelo das ideias de extrema-direita. Com base nesta premissa, o autor desenvolve a tese fundamental do livro: os cidadãos não estão agora necessariamente mais atraídos pelas ideias de extrema-direita; o apoio já existia – agora apenas se expressa de forma mais aberta. O que mudou então, nos tempos recentes, para que as preferências falsificadas se tornassem preferências abertas? O que levou ao “fim da vergonha”?

Para responder a essa pergunta, Vicente Valentim desenvolve o seu modelo em três fases:

A Fase de Latência

Nesta fase, os eleitores alinhados com os ideais da extrema-direita tendem a permanecer em silêncio sobre as suas preferências, temendo a reprovação social. Este silêncio cria uma perceção distorcida da opinião pública, como referido anteriormente, e subestima significativamente o verdadeiro nível de apoio às ideias de extrema-direita.

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O desconhecimento do verdadeiro potencial eleitoral destas ideias torna mais difícil atrair políticos competentes para mobilizar esta porção do eleitorado. Como resultado, a extrema-direita carece de líderes perspicazes, dificultando a obtenção de tração significativa na esfera pública.

Vicente Valentim demonstra como este é um “equilíbrio estável”. Nesta fase, é improvável que os partidos de extrema-direita tenham sucesso eleitoral. Isto reforça a ideia entre os eleitores de que as suas opiniões são marginais e que a sociedade em geral as desaprova. Consequentemente, há uma tendência para continuarem a ocultar as suas verdadeiras preferências, reforçando o processo mencionado anteriormente. Foi devido a esta dinâmica que não assistimos ao crescimento da extrema-direita durante décadas.

A Fase de Ativação

Se este é um equilíbrio estável, como pode ser ele quebrado? A rutura ocorre quando um político astuto, impulsionado por um choque externo (como uma crise económica, pandemia, guerra ou crise migratória), reconhece uma procura latente por estas ideias e tenta mobilizá-la. Embora as normas sociais continuem hostis a essas ideias, os incentivos para seguir este caminho aumentam para os empreendedores políticos (“political entrepreneur”), que se tornam mais dispostos a enfrentar as repercussões sociais devido aos potenciais ganhos que agora se apresentam.

De facto, devido à ausência de representação competente dessas ideias, os empreendedores políticos veem nas recompensas dessa mudança uma oportunidade significativa, potencialmente tornando-os figuras de destaque na arena política. Sendo mais capacitados, estão mais bem preparados para mobilizar os eleitores.

Caso o empreendedor político tenha sucesso eleitoral e obtenha representação parlamentar, inicia-se a terceira e última fase deste processo de normalização: a fase de revelação.

A Fase de Revelação

Na fase de revelação, aquela que experienciamos atualmente na maioria das democracias ocidentais, o apoio às ideias de extrema-direita torna-se “aberto”.  A presença de representantes de extrema-direita no parlamento permite reduzir o estigma associado a estas, tornando socialmente mais aceitável que os indivíduos expressem abertamente as suas verdadeiras preferências. Chega-se assim ao “fim da vergonha”.

Os comentários de André Ventura sobre o povo turco na semana passada são um exemplo perfeito do culminar deste processo. Não é preciso debater se as afirmações de André Ventura se enquadram na liberdade de expressão ou constituem discurso de ódio para perceber que o discurso político mudou radicalmente num curto espaço de tempo. Ideias ou insinuações que anteriormente eram impensáveis de serem proferidas em público (muito menos no parlamento) devido à reprovação social, são agora aplaudidas. Podemos também observar os Estados Unidos e Donald Trump, que consistentemente utiliza uma linguagem reprovável e ridiculariza o seu adversário político, apelidando-o de “Sleepy Joe”. Além disso, Trump proferiu várias declarações polémicas, incluindo comentários depreciativos sobre os imigrantes mexicanos, referindo-se a estes como “criminosos” e “violadores”. Como pode alguém que se comporta desta forma alcançar sucesso eleitoral? Como chegámos a este ponto?

Com a obra de Vicente Valentim, entendemos melhor o processo de normalização das ideias de extrema-direita. No entanto, a questão principal permanece: de onde surgem estas preferências políticas? O autor não aborda (não era o objetivo do livro) o processo de formação das preferências eleitorais. Compreender como essas preferências se formam e evoluem é crucial para antecipar e responder às mudanças no cenário político, como o próprio autor reconhece. A questão não é o que dizem André Ventura ou Donald Trump mas sim por que é tão apelativa a sua mensagem.