A democracia assenta num primado tão simples quanto essencial: o consenso, isto é, a capacidade de ultrapassar diferendos de opinião através da convergência e do estabelecimento de vasos comunicantes, que implicam a negociação. Ora, sucede que o contrário da democracia não é necessariamente o autoritarismo ou a ditadura, estágios avançados da degradação política em que por inépcia popular, golpe de Estado ou atuação contrária à ordem constitucional democrática e de Direito, alguém toma o poder atuando discrionariamente. Desse modo, o contrário imediato da democracia é a polarização, cuja matéria mais inflamatória é as guerras culturais, enquanto questões de natureza moral e identitária sobre as quais se tem uma posição inegociável em que opiniões diversas e adversas (note-se que, embora diferentes, são tomadas como iguais) são vistas como imorais e aqueles que as defendem como inimigos.
No entanto, devido a séculos de socialização na convivência, o consenso, ou o chão comum, se quisermos, permanece como fator de estabilização social, pelo que em casos de dissenso a sociedade tende a calibrar-se após os conflitos. É, por tal razão, que os guerreiros culturais, sejam eles “guerreiros da justiça social” (social justice warriors) ou guerreiros da contraofensiva conservadora (cultural backlash), necessitam de agitar continuamente as águas, de modo a manter a polarização ativa, sem a qual não existem ganhos de causa. Isto porque, para os justiceiros sociais, não basta que ideias progressistas se vão implementando na medida do possível, é preciso refundar a sociedade no imediato, ao passo que os guardiões dos costumes tendem a ver como ofensa a uma moral que creem intemporal e divina, qualquer iniciativa que caminhe no sentido da inclusão da diferença.
Quando olhamos o contexto nacional, podemos equacionar que as guerras culturais têm baixa densidade ou quase inexistência. Mas isso é porque observamos os fenómenos a partir de um horizonte metodológico exclusivo: o comparativo face a outros países, onde as guerras culturais estão no âmago da própria vida política, como os Estados Unidos e, por ciclos, o Brasil. No entanto, a história mostra-nos que as guerras culturais estão presentes em Portugal, mesmo antes da classificação (retroativamente) como tal. Basta vermos os casos da Revolta da Maria da Fonte e de Rosa Calmón.
Sucede, de igual modo, que vivemos um período de polarização global, com o novo populismo, em especial de direita, focado no identitarismo antiglobalização e de pendor nativista, isto é, focada na identidade biocultural europeia ou americana. Esse largo espetro contém ingredientes de guerras culturais imaterias, já que se disputa a hegemonia cultural.
Ora, é precisamente aí que se inscreve tanto as novas medidas sobre o aborto, propostas pelo Bloco de Esquerda, que visando ser mais garantísticas para as mulheres (pessoas gestantes?) envolvidas podem bem convocar as reações contrárias e reacender o debate sobre o assunto, e o movimento de direita que junta vozes para travar uma lei aprovada cinco vezes no Parlamento: a da eutanásia. Se no plano jurídico a questão da eutanásia pode convocar trâmites, já devidamente ultrapassados, é no plano da moral, portanto no plano das guerras culturais, que a disputa se centra, sobretudo sob a premissa de que “só Deus dá e tira a vida” vs. consagração da autodeterminação dos sujeitos em momentos em que estes não têm autotutela física, ou seja, autonomia para decidir e atuar sobre si mesmos.
Assim, as guerras culturais continuam a fazer a sua trajetória, num contexto social em que o chão comum ainda impera, lavrado por uma identidade de acalmia e serenidade, mas onde as sementes da discórdia e da polarização vão sendo plantadas, pelas mãos dos identitarismos mais radicais, e do ar do tempo que sopra da Europa. Por razões sociodemográficas e geográficas, Portugal dificilmente se encontrará na circunstância dos Estados Unidos, onde existem, de facto, duas américas, mas é certo que podemos vir a ter uma disputa bem ao estilo do período republicano, entre “a cidade e as serras”.