Mary Douglas (1921-2007) foi uma antropóloga britânica a cujo pensamento se afigura importante regressar, em particular a sua teoria da pureza. Isto a propósito da manifestação mais evidente do movimento woke: a cultura do cancelamento, e a recente polémica com a obra de Roald Dahl e os livros de James Bond.

É hoje doutrina corrente que o movimento woke tendo-se iniciado como uma proposta benemérita de alerta e combate aos problemas mal varridos para debaixo do tapete das sociedades ocidentais, como o racismo, a homofobia e o machismo, as quais permanecem de difícil superação, tornou-se rapidamente um movimento de forte dimensão espiritual, assumindo-se como uma alternativa ao desencantamento do mundo e à procura de espiritualidades Nova Era (processo que marcou as últimas décadas do século XX e o começo do século XXI). Não é por acaso que John McWhorter considera que o movimento woke tem prejudicado o combate ao racismo, sendo um movimento sobretudo “branco” de autopunição e policiamento público, que não aceita a menor dissidência e que, tendo uma natureza religiosa, só encontra o seu trabalho concluído quando tiver convertido a última pessoa à “boa nova”.

É aqui que importa voltar a Mary Douglas e à teoria da pureza. De acordo com a proposta teórica da antropóloga, as sociedades constroem a sua compreensão da vida e a organização social tendo por base duas categorias essenciais: pureza e impureza. O “puro” e o “impuro” estruturam as pertenças e definem as fronteiras. Nesta lógica de forte dimensão maniqueísta, de base judaico-cristã, à “pureza” corresponde a ordem, o sagrado, o bem, ao passo que à “impureza” diz respeito o caos, a desordem e o mal. Desse modo, ao “impuro” associa-se a “contaminação”, uma vez que há uma tendência daquele se manifestar nos terrenos da “pureza”, como parte de um processo permanente que demanda por “purificação”. Assim, elementos “puros” e “impuros” integram o quotidiano, como alimentos, hábitos e comportamentos sexuais.

Fora do quadro referencial religioso, em que o “puro” e o “impuro” se relacionam a tabus e prescrições alimentares e comportamentais, no âmbito social, a teoria de Douglas verte sobre a forma como as sociedades organizam as suas fronteiras – sendo geralmente determinadas por categorias sociais como “raça”, género, classe, etnia ou religião – em termos de atitudes aceitáveis, próprios do ingroup. Quanto mais rígida for a noção de “pureza”, maior a probabilidade de punição quanto à sua violação. Sucede, todavia, que tanto as fronteiras quanto o paradigma de “pureza” não são estanques, acompanhando as naturais mutações das sociedades e respondendo aos estímulos como crises sociais e económicas, donde vão sendo reajustadas e negociadas as normas sociais que as determinam. Não obstante, as normas, as fronteiras e a classificação do que é “puro” e “impuro” tem um efeito real na sociedade, geralmente como forma de determinação do outgroup, ou seja, estimulando a exclusão social.

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De que modo esta teoria tem implicações para o caso concreto? Tal como refere Mary Douglas, a noção de “pureza” é afetada pelas dinâmicas sociais. Nesse sentido, quando olhamos as mudanças sociais recentes, compreendemos que o ressurgir das guerras culturais produziu uma polarização, com a rápida diluição dos vasos comunicantes que formam as democracias a partir de correntes opostas, mas dialogantes. Ao emergirem dois grupos antagónicos, encontramos fronteiras sociais rígidas, baseadas em noções opostas de normas e pertença, em que a noção do que é “puro” e “impuro” se torna hiperbólica.

Ora, o que temos aqui, não com o cancelamento completo de 007 ou das obras de Dahl, mas com o processo de corte e costura que historicamente sempre se caracterizou e classificou como “censura”, não é menos do que uma determinação de que existem determinados elementos linguísticos que configurando “tabu” são contaminações de um novo ideal de “pureza”. O puritanismo deixa de se restringir a elementos dietéticos e comportamentos e moral sexual, mas passa a incluir elementos linguísticos, visando uma reprogramação social que almeja a criação de um Jardim do Éden na Terra através da expurga dos elementos “impuros” e desviantes.

A história está cheia de purgas, de queima de livros e atos de “purificação” social. Historicamente tais atos vinham do grupo dominante e, sobretudo, das instituições de poder desse grupo, como a Igreja. A novidade aqui é a introdução de um sistema de “purificação”, de purga, que não visando a exclusão física dos sujeitos, visa a exclusão moral e, ao mesmo tempo, realiza a sua tarefa de reescrita da História a partir de uma visão hermética de moral social, em que só será “puro” aquele que recuse o uso de expressões que possam, da forma mais eventual, ofender (que é algo que cada qual determina por si, de modo subjetivo) outrem, e que se disponha a policiar o espaço público em busca dos prevaricadores.