Devo começar por referir que este tema se cruza de forma indelével com uma pesquisa que tenho em curso, desde 2021, que visa mapear as diferentes interpretações e sensibilidades políticas vigentes em Portugal sobre temas que formam as ditas «guerras culturais». É por isso que me parece pertinente produzir este texto, já que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, fez questão de trazer a terreiro o debate sobre as reparações históricas.

Dos dados coletados, a primeira constatação é a de que a clássica dicotomia Esquerda/Direita não chega para determinar posições, porquanto foi possível identificar interlocutores da área política da direita favoráveis a uma apreciação crítica dos acontecimentos. Em segundo lugar, constata-se que entre aqueles que se posicionam a favor de uma análise crítica da histórica ultramarina portuguesa concorrem interpretações dispares, entre uma leitura mais radical, que rejeita qualquer abordagem diversificada dos acontecimentos, defendendo uma leitura unidimensional centrada na violência, e uma mais mitigada, que procura conjugar o reconhecimento dos factos negativos que marcam a história das interações nesse longo período, com as circunstâncias e eventos marcados pelas relações bilaterais e ganhos globais, nomeadamente os avanços científicos, as rotas comerciais, e períodos de diplomacia, à luz dos valores e dos contextos das épocas. Por último, identificaram-se posições adversativas, que procuram enfatizar a excecionalidade colonial portuguesa ou, pelo menos, que rejeitam o debate considerando que este é anacrónico e divisivo da sociedade.

O contexto do debate numa perspetiva teórica

Em primeiro lugar, importa ter presente que estamos num tear onde se entrelaça História e Memória. Para o historiador Jacques Le Goff, que muito pensou sobre esta relação, tanto a história quanto a memória são construções, sujeitas a influências e interpretações. A história encontra-se sujeita à perspetiva do historiador, e a memória é moldada por fatores culturais e sociais, como normas sociais, crenças, valores e ideologias de um determinado grupo. Em concordância, Jean-Louis Triaud, afirma que a memória é um ato de poder por parte de um grupo, a afirmação de um ponto de partida, de um caminho e de um futuro.

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Ora, isto tem tudo a ver com a questão da história ultramarina portuguesa e da forma como são recordados, celebrados e participam da identidade e da autoestima portuguesa. Como refere o etnossimbologista Anthony D. Smith, símbolos, mitos e memórias históricas desempenham um papel crucial na formação e preservação da identidade nacional. Assim, se diversos episódios operam como símbolos na memória nacional, como a “padeira de Aljubarrota”, nenhum é mais duradouro e central do que a expansão marítima, pela forma como transformou um país periférico num império mundial.

A epopeia marítima portuguesa tornou-se, como referiu Barradas de Carvalho, o marcador da história anterior e posterior de Portugal, ao ponto de produzir o que Eduardo Lourenço chamou de “hiperidentidade”, isto é, uma autoconsciência nacional que se manifesta na exaltação dos chamados “Descobrimentos”. Se é verdade que estes eram o centro da identidade portuguesa desde a monarquia – como as ideias oitocentistas de excecionalismo e caráter messiânico português – e não foram excluídos como gramática identitária pela I República, seria o Estado Novo a fixá-los como código genético da autoestima coletiva.

Neste plano, a obra de Gilberto Freyre desempenhou um importante papel. Como mostra Cláudia Castelo, após o período mítico imperial da década de 1930, em que ideias de mestiçagem e mistura cultural eram percebidas como uma degeneração, o pós-II Guerra Mundial ditou a instrumentalização da obra de Freyre, fazendo do lusotropicalismo uma ferramenta essencial para justificar a presença colonial portuguesa perante a pressão internacional assente na autodeterminação dos povos, em consequência do choque causada pelo holocausto.

Assim, o Estado Novo apropriou-se do pensamento de Freyre como “suporte científico” do colonialismo português, através das ideias de capacidade biológica de adaptação aos trópicos e de unidade cultural do “mundo que o português criou”. Convém ter presente, como referido, que esta postura representou uma mudança no pensamento colonial português, de que a entrada de Adriano Moreira como Ministro do Ultramar foi determinante, tendo sido este o autor da expressão “modo português de estar no mundo”, para se referir ao carácter excecional português de mistura, diálogo, humanismo e mestiçagem, que contrastava com o modelo colonial britânico de clara separação racial.

Desse modo, Portugal era uma nação pluricontinental e multiétnica, mas de alma comum, em torno da língua de Camões, e de um catolicismo efusivamente adotado pelos povos coloniais. A Emissora Nacional passou a ter por missão difundir esta ideia, criando uma nova memória coletiva que não tinha respaldo na realidade concreta das relações coloniais. Perante a segregação racial denunciada em vários relatórios, emerge a narrativa de uma identidade euro-africana como marca genética e cultural portuguesa, superando a categoria «brancos» através da genética miscigenada portuguesa.

O fim do império colonial não determinou o fim do lusotropicalismo. As comemorações dos 500 anos dos Descobrimentos abriram a porta para um ciclo longo desde a década de 1980 até 2000, através de um revivalismo e nacionalismo ultramarino, que incluiu a Expo’98 e um período da música pop nacionalista com Heróis do Mar e Da Vinci. Esse arranjo institucional acabou por não romper com a ideologia anterior, produzindo efeitos sociais até ao presente. Como refere recente sondagem realizada pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS) e pelo ISCTE, 56% dos inquiridos concordam com a ideia de que os portugueses tiveram a capacidade de se “misturarem com os povos colonizados” e 52% consideram que “o colonialismo português foi fundamental para o desenvolvimento” desses povos.”

Anacronismo, Escravatura e Reparações

 

O debate sobre o modo como olhar para o passado afigura-se delicado, e envolve recorrentes acusações dos setores mais conservadores de que o voluntarismo crítico atua fazendo uso de um anacronismo, isto é, de um olhar retrospetivo que visa aplicar um julgamento moral sobre a história a partir de valores do presente.

Sobre esta problemática, lembremos David Lowenthal que já dizia que muitas vezes transformamos o passado para atender às necessidades do presente. E isto é tão válido para as solidificações ideológicas hegemónicas, enquanto atos de poder que procuram cristalizar uma narrativa heroica, recusando uma ponderação crítica que ultrapasse a narrativa lusotropicalista e assuma a plenitude dos eventos, como para as agências contrahegemónicas que visam construir uma nova narrativa a partir do lugar das “vítimas” da história. Ambas partilham a estratégia da simplificação e linearidade discursiva para fins políticos.

De modo muito sistemático, já que o espaço não permite um ensaio de fôlego, há um evidente confronto entre visões sobre a história e os benefícios e malefícios da colonização. Em primeiro lugar, a história das relações ultramarinas não se resume ao colonialismo. Esse é um primeiro erro na edificação de uma narrativa contrahegemónica, marcada por um quadro teórico que concebe as relações sociais como determinadas unicamente pelo binómio opressor/oprimido. As relações entre Portugal e o Reino do Congo e a presença simultânea de escravos e nobreza africana em Lisboa ou na Universidade de Coimbra no século XVI, são um exemplo de como a história é diversificada. Também releva que na África Ocidental a presença colonial é um fenómeno do século XIX, o que é diferente do caso da África Central, onde uma colónia de Luanda data do século XVI.

A questão ganha particular relevo no que se refere à escravatura, terreno onde disputam duas narrativas: uma da agência exclusiva ou quase exclusiva europeia, e outra de que a escravatura africana deve ser inserida num histórico de longo-termo, em que nada se inaugura e de que a novidade é a atuação europeia em sentido contrário, isto é, de abolição. Ambas participam de ações políticas sobre a memória que visam impactar ideologicamente a história. Evidentemente que processos de escravatura, de trabalho compelido e de servidão fazem parte da história da humanidade, e foram, inclusive, um processo de longo-termo na Europa, desde a Grécia Antiga até à modernidade, não sendo por acaso que o termo “escravo” deriva de “slav”, dizendo respeito ao povo eslavo.

Em primeiro lugar, é inegável que um comércio interno africano de escravos era uma realidade duradoura no continente, sobretudo da África subsaariana para o norte islamizado, com um volume significativo de escravos por um período extenso. Nesse sentido, é uma invenção de memória para fins ideológicos afirmar que é a presença europeia que inaugura o comércio de escravos.

Em segundo lugar, é inquestionável que o comércio de escravos no eixo atlântico, agora já com a agência europeia, só foi possível com a participação das elites africanas. De igual modo, a historiografia vem mostrando como o comércio de escravos africanos pelo Atlântico se encontra numa área geográfica muito mais concentrada na Costa do que se considerava anteriormente. Ou seja, a captação de escravos do interior dependeu sobremaneira de parceiros africanos.

O último ciclo de escravos para o Brasil levou milhares de escravos do Golfo do Benim, em particular de identidade étnica Yorùbá e Fon-Daomeana, e isso só foi possível por causa das guerras de libertação do Daomé face ao império Yorùbá e, segundo, das guerras jihadistas mais a norte de ataque a Òyó, capital Yorùbá. Ambas as guerras produziram um volume de mão-de-obra escravizada relevantíssimo. Portanto, sim, os africanos participaram ativamente do processo de comércio de escravos.

Contudo, é preciso dizer algo mais, nomeadamente que o comércio de escravos que vai do século XVI até à abolição é feito em escala incomparável, mobilizando meios sem paralelo, ao ponto de podermos falar numa produção industrial de escravos. Para além disso, como mostram historiadores como Paul Lovejoy, embora conflitos internos existissem, a demanda europeia por escravos intensificou guerras e raptos para captura de escravos, gerando uma verdadeira economia de mercado escravocrata.

Por fim, no que tange à abolição da escravatura, verifica-se uma combinação de agências. Isto é, nem a abolição é apenas um produto europeu, leitura eurocêntrica da história, nem é apenas resultado a rebelião africana e afrodescendente. Como mostra o historiador Seymour Drescher, tanto movimentos abolicionistas brancos quanto a rebelião e a oportunidade de escravos e ex-escravos terem “voz”, foram determinantes no processo de abolição da escravidão.

No que se refere, então, às reparações históricas, este é um debate longo e pertinente, mas que carece, também ele, de uma avaliação historiográfica desapaixonada. A reparação histórica material, parece particularmente difícil de alcançar, particular num país periférico e pobre como Portugal. É inegável que o colonialismo português determinou as estruturas sociais da África lusófona, de um modo muito mais evidente e tardio do que o caso brasileiro. Ainda que o Brasil independente tenha herdado as lógicas de poder colonial, foi autónomo na perpetuação da escravatura e do comércio de escravos.

Nesse capítulo, a reparação histórica talvez deva ter uma natureza mais simbólica e imaterial, que ao lado da valorização do engenho científico e ultramarino português, seja capaz de reconhecer e ensinar as múltiplas esquinas da história e as consequências positivas e negativas da expansão marítima, expurgando a narrativa lusotropicalista sem adotar uma narrativa inversa, de condenação, que crie uma desordem identitária ou produza uma ideologia de aversão ao colonizador com potencial destabilizador social. Em segundo lugar, a reparação passa pelo reconhecimento e reforço de políticas públicas no que tange a processos de segregação racial, resultantes de uma ideologia duradoura que tem demorado a ser revertida, pelo que é fundamental pensar a «portugalidade» como culturalmente diversa. Em terceiro lugar, importa reconhecer que a reparação tem sido feita através de políticas migratórias que fomentam e facilitam a entrada de cidadãos da CPLP e através de regras constitucionais que permitem o acesso a cargos políticos eletivos numa ótica de reciprocidade.

Enfim, percebe-se que estamos num terreno arenoso que não deve ser tratado de forma politizada e/ou apaixonada, sob pena de perpetuar o lusotropicalismo ou de fazer uso do anacronismo para estabelecer uma contrahegemonia. Um debate sereno precisa ser transversal, envolvendo atores políticos, a universidade e a sociedade civil.

Portugal nunca conseguirá dar o passo além do lusotropicalismo sem uma atitude crítica, mas serena, que mostre que a identidade portuguesa é longeva, sólida, e que uma leitura complexificada da história não é um atentado à autoestima nacional. Para isso, é preciso preservar uma margem para uma certa dose de nacionalismo, sem o qual nenhum país é capaz de se preservar.

De modo claro: Portugal não pode ter uma política identitária sobre a história e memória nacional, nem de euforia ultramarina, nem de condenação moral. A verdade é que um país com quase mil anos aguenta bem uma reflexão sobre o bom e o mau, sem precisar do vilão.