A evidência de a evolução ser historicamente considerada inexorável tende a gerar uma sensação de dormência coletiva cujo acordar resulta mormente de episódios suficientemente traumáticos que quebram repentinamente a inépcia da sociedade. A tomada de decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos representa um destes episódios, onde mais de 300 milhões de americanos repentinamente acordaram para uma vida em sociedade com valores diametralmente diferentes daqueles que tinham inconscientemente selado ao longo de 50 anos.

Qualquer análise à decisão tomada pecará pela incompletude. Nos parágrafos abaixo, na qualidade de mero observador, escrevo sobre três declinações não exaustivas e fundamentais que acredito resultarem da decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Em primeiro lugar, defendo que a Justiça deve ser crescentemente e ativamente reformadora através de uma visão também cada vez mais inclusiva. Em segundo lugar, argumento em favor da dissociação entre a neutralidade de posição e a estabilidade, reforçando o ponto de que a neutralidade pode muito bem ser geradora de mais radicalismo e caos. Por último, discuto as evidências da necessidade de desenvolver um estado de alerta constante por forma a mitigar estados de dormência coletiva com consequências potencialmente incertas e, genericamente, nocivas à vida moderna em sociedade.

Justiça: história e futuro

Uma parte do racional do Supremo Tribunal dos Estados Unidos deriva do argumentário de que o direito ao aborto não cumpre o critério (não exclusivo) de ser concordante com a “história da nação e tradição”. Em concreto, justifica-se que à data do caso Roe V. Wade (1973) ou mesmo da Fourteenth Amendement que suporta o argumento do tribunal em 1973 de que o direito ao aborto deriva do direito à privacidade (1868), a maioria dos estados norte-americanos criminalizava o aborto. A questão que imediatamente se coloca é: de que forma é que a “história da nação e tradição”, à data amplamente enviesadas, por exemplo, pela falta de inclusão de mulheres em cargos de decisão, é um argumento suficiente? Adicionalmente, a relação entre a Justiça, a História e o Futuro encerra questões que enquanto sociedade devemos responder. Deve a Justiça suportar-se de forma tão significativa no passado sem uma contextualização razoável da contemporaneidade e de futuro? É a Justiça um farol de mudança ou assume-se conceptual e declaradamente como um instrumento pesado, lento e passivo? A opinião do Supremo Tribunal dos Estados Unidos reforça a compatibilidade com um ideal de Justiça em que esta não deve ser parte ativa da mudança e que, manifestamente, é limitadora para um mundo cujas liberdades e diretos humanos avançam no sentido da opinião e colocando em sentido quem neles quer inscrever universalidade.

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Justiça: neutralidade e radicalismo

Durante a opinião, em concreto no texto do Juiz Brett Kavanaugh, este declara que a decisão reforça a neutralidade do tribunal e fá-lo pressupondo valores como a estabilidade. O problema com este ponto é que pressupõe que a neutralidade se relaciona de forma unívoca com a moderação e até com a liberdade, quando resulta claro que nem sempre é assim. A neutralidade do tribunal não é uma não-ação, é uma ação declarada e positiva. A neutralidade da decisão é em si mesmo radical, contribuindo mais para o caos e para instabilidade do que, porventura, promete. Que fique claro: deixar a decisão ao nível estadual é uma negação da mais alta instância de justiça norte-americana em contribuir ativamente para a universalização e, no seu exato contrário, é uma contribuição ativa para o caos e completamente antagónico ao seu dever de contribuir para a estabilidade da sociedade. A decisão da interrupção voluntária da gravidez passa a ser o resultado de uma equação volátil em que os riscos de saúde, os custos financeiros e o medo voltam a figurar no processo de tomada de decisão de mulheres num estado de instabilidade emocional elevado. A decisão do tribunal, ao invés de neutral, contribui para facilitar cenários em que se perpetua a dificuldade de um momento na vida de uma mulher. Todo o seu contrário, é mentira.

Justiça: em estado de alerta

O caso em julgamento Dobbs vs Jackson Women’s Health Organization versava, grosso modo, sobre a constitucionalidade de uma lei estadual do Mississipi que definia proibições para a realização de aborto após 15 semanas de gravidez (limite inferior ao definido no caso Roe V. Wade de 24 semanas). Uma decisão a favor da lei do Mississipi, exclusivamente, teria efeitos muito menos generalizáveis do que aqueles que acabaram por ter com a decisão do tribunal em ir mais além e retirar na totalidade o direito constitucional concedido após o caso Roe V. Wade. O tribunal foi mais além do que era legalmente necessário – tal como descrito pelo Juiz John Roberts que votou a favor da maioria conservadora no caso da lei do Mississipi, mas contrariamente à reversão da decisão tomada no caso Roe V. Wade. A extensão das conclusões não eram legalmente necessárias e deixam naturalmente no ar argumentos de que motivações políticas e ideológicas poderão ter sido contribuidoras. Aliás, a leitura atenta à opinião concordante do Juiz Clarence Thomas, onde são realizadas variadas extensões lógicas a temas como a contracepção ou casamento homossexual, revelam cenários adicionais de reversão da concessão de constitucionalidade absolutamente dantescos e que configuram um sinal de alerta que não deve ser ignorado. O ponto fundamental a reter é a efetiva criticidade de enquanto sociedade construirmos fortalezas na defesa dos direitos considerados fundamentais. A decisão de 24 de Junho foi absolutamente inesperada e apanharia a sociedade norte-americana em choque se fosse realizada há 10 anos atrás. O mundo evolui e evolui em sentidos frequentemente incertos e de forma rápida. A decisão do caso Dobbs vs Jackson Women’s Health Organization expandiu-se para o caso Roe V. Wade, existem já referências preocupantes na opinião do Juiz Clarence Thomas e existem sinais na sociedade norte-americana de que a decisão não vive na individualidade e na solidão. Desenvolver um sentido apurado e constante de alerta e, em boa verdade, igualmente radical na defesa de direitos fundamentais, é absolutamente imprescindível para travar um potencial espiral de retrocesso civilizacional.

O mundo evolui genérica e historicamente no sentido certo da evolução. Mas que nunca nos esqueçamos das palavras de Popper: o futuro é aberto. Não é predeterminado e as possibilidades que vivem no futuro são infinitas. Cabe-nos a nós, americanos ou portugueses, defender ativamente a evolução, no sentido certo.