O nosso atual ministro das Finanças, Mário Centeno, é doutorado pela Universidade de Harvard, enquanto o seu antecessor Vítor Gaspar se formou e doutorou em Portugal e é primo do ex-coordenador do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã. De acordo com a narrativa dominante, coube ao formado em Harvard, a maior e melhor universidade da pátria do capitalismo, acabar com a austeridade que trouxera o primo de Louçã.
Uma ironia… facilmente desmontável.
Por um lado, é duvidoso que os EUA ainda sejam a pátria do capitalismo. Desde o New Deal de Roosevelt à legislação antitrust, passando pela denúncia do complexo militar-industrial de Eisenhower aos Medicare, Medicaid, e ObamaCare, há muito que as características negativas imputadas ao capitalismo pela esquerda do séc. XIX se desvaneceram ou se foram atenuando nos EUA.
Por outro lado, quem trouxe a austeridade não foi Vítor Gaspar, mas o governo de José Sócrates, nomeadamente nos anos 2009 e 2010, que registaram deficits de 9,8% e 11,2%, respetivamente:
Por fim, é duvidoso que Centeno tenha verdadeiramente acabado com a austeridade. Eis o gráfico das despesas estaduais desde 2008, que mede efetivamente a austeridade do Estado:
Nada como uma bela curva, preto no branco, para nos demonstrar como evoluíram as despesas do Estado desde o “ano do grande deficit” de 2010, em que ultrapassaram os 9,2 biliões € *, até à grande descida de 2013, em que diminuíram para cerca de 8,2 biliões. Foi a “grande austeridade” de Vítor Gaspar, configurada numa diminuição de despesa de cerca de 1 bilião €.
O alegado fim da austeridade de Mário Centeno consistiu em subir as despesas estatais de 8,2 biliões para 8,4 biliões, ou seja, uns meros 200 milhões €. Para trás ficaram 800 milhões, ou seja, o legado de Vítor Gaspar permaneceu praticamente inalterado.
Como conseguiu então Centeno criar a ideia de que acabara com a austeridade? Com duas magníficas encenações.
A primeira encenação consistiu em deixar que se inscrevessem verbas no Orçamento de Estado que permitiam anunciar que acabara o ciclo económico da austeridade. Estando inseridas na lei de Orçamento de Estado, ninguém podia desmentir que se entrara num novo ciclo, numa nova política em contraste com a do governo anterior.Só que, antes de poderem ser utilizadas, eram cativadas e assim se garantia a manutenção da métrica desejada pela Europa para terminar o procedimento de deficit excessivo.Para completar a manobra, Centeno empregou o ligeiro aumento nas despesas do Estado acima referido – os tais 200 milhões – para acabar com as reduções salariais aos cerca de 669.725 funcionários públicos portugueses, criando assim um ambiente de alívio económico em todo o país. Partindo do valor médio salarial de 1.686,00€ na função pública, os 200 milhões dariam para um aumento cerca de 18%, equivalente a 300,00€ por funcionário.
É evidente que a diminuição de 800 milhões anuais contribui para que o Estado continue sem capacidade de investimento em infraestruturas, permanecendo um mero pagador de salários a uma gigantesca administração pública. Recorde-se que em 1969, com uma população de cerca de 9 milhões (hoje temos 10,3), com um império colonial e antes da era dos computadores, tínhamos 169.755 funcionários públicos. O nosso verdadeiro monstro económico público, aquele que ninguém consegue domar, foi esse aumento de cerca de 500 mil funcionários.
A segunda grande encenação teve um ano de antecedência para ser preparada. Consistiu no agora célebre “menor deficit da história da democracia”, alegadamente alcançado em 2017. A discussão entre o INE e o Eurostat sobre como se iria classificar a despesa de 3,9 biliões que o Estado canalizou para a CGD começou logo a 10 de março de 2017, no momento em que a Comissão Europeia aprovou a recapitalização da CGD. A partir desse momento, o governo sabia que teria de contar com mais 2% a somar ao deficit, pois qualquer pessoa percebia imediatamente que as probabilidades de o INE vencer a discussão com o Eurostat eram mínimas. Não admira assim o esforço, ao longo do ano, para conseguir o menor deficit possível. O grande estratagema de Centeno foi começar a anunciar que conseguira o menor deficit da democracia ainda antes de o Eurostat publicar o resultado oficial do deficit português. Depois de a Europa lançar o balde de água fria de validar o deficit de 3%, Centeno assumiu o papel de injustiçado e ainda teve a lata de acusar os serviços estatísticos europeus de estarem errados.
É indubitável que Centeno teve sorte: os juros negativos, o crescimento económico europeu, a WebSummit e a bolha imobiliária. Os agentes económicos acreditaram que a crise estava terminada e começaram a gastar, iniciando verdadeiramente um novo ciclo de despesa que gerou novos rendimentos para o Estado, especialmente através do IVA.
No entanto, as vulnerabilidades do sistema económico-financeiro português permanecem inalteradas, aguardando as tão necessárias e sempre adiadas reformas:
A produtividade está a descer, e estamos na cauda da Europa:
Os custos laborais estão a subir, prejudicando o investimento e a criação de emprego:
A balança comercial continua deficitária:
O valor das empresas portuguesas não recupera:
Os salários dos trabalhadores pouco especializados descem:
E os preços dos serviços de “utilities” como a eletricidade, água e gás, sobem, sobem, e sobem:
Em conclusão, a fórmula de Centeno conseguiu resolver a equação da métrica europeia e a da austeridade sem resolver nenhum problema da economia portuguesa. Por um passe de mágica, desapareceu o procedimento de deficit excessivo e desapareceu a austeridade, mas permaneceu o lento e inexorável declínio da nossa economia.
Centeno conseguiu resolver os problemas da geringonça e os da Europa, mas sem qualquer contribuição para resolver o problema nacional. Merece ser Presidente do Eurogrupo, mas não ministro das Finanças de Portugal.
* Nota: neste artigo optou-se por empregue a nomenclatura para números em que mil milhões = um bilião.