Durante meses, os institutos de sondagens norte-americanos, incluindo o Five ThirtyEight e o RealClear Politics, prepararam-nos para uma estrondosa derrota de Donald Trump e do Partido Republicano. Um deles, o Consensus Electoral Map, dava, à partida, 277 votos para os Democratas e 163 para os Republicanos, e em quase todos Biden vencia por 7, 8, 10, 12 ou mais pontos, a nível nacional. E vencia mesmo em território republicano – na Flórida, por 5 pontos, e até no Texas –, enquanto uma hecatombe varria os Republicanos do Senado e entregava aos Democratas uma maioria reforçada nos Representantes.

Os comentadores, os professores, os especialistas e os jornalistas do mainstream americano – e do nosso, acolitados até à caricatura por opiniosos pivots –  não pararam de demonstrar de como, por maioria de razão, o Arcanjo Biden ia esmagar num duelo épico final a Besta do Apocalipse Donald J. 666 Trump, que assim arrastava para as profundas do Inferno um Partido Republicano que tomara à má fila e do qual fizera um aglomerado de “deplorables”.

Dizer mal – muito mal – de Donald Trump tornou-se, também por cá, um exercício de virtude, um atestado de boa consciência liberal, democrática e socialmente correcta e até de superior inteligência e cultura. Uns de modo soft, queirosiano, outros com verdadeiro tremendismo camiliano, todos exorcizaram o playboy da hotelaria que se atrevera, não tanto a vir para a política, mas a vir “assim” para a política e logo a pegar numa agenda proibida – nacionalista, identitária, realista, proteccionista.

Mas foi “assim” que Donald Trump furou o grande consenso. Foi “assim”, começando por irromper como um pirata, sem regras nem modos, no Partido Republicano, que foi desconstruindo os outros candidatos – Jebb Bush, Marco Rubio, Ted Cruz. E eles fizeram por isso: eram uma dúzia e estavam divididos contra o perturbador que, em termos relativos de minoria qualificada, os foi batendo nas primárias.

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Havia coisas nele que então me chocavam muito e que me chocam ainda: o snobismo de ricaço de Queens, de milionário do real estate, de personagem excêntrica e pós-moderna de reality show, a desenvoltura arrogante de quem se acha capaz de chegar, ver e vencer facilmente. E, sobretudo, o ter começado por insultar alguém que sempre admirei, John McCain, aviador e prisioneiro de guerra nas celas dos comunistas de Hanoi; McCain, um “herói americano”, um herói tout court, que se recusara a ser libertado, por privilégio, antes dos seus camaradas.

Quando Trump ganhou a nomeação republicana e vi que alguns dos meus amigos republicanos, reaganistas de sempre, até católicos, o apoiavam, não pude deixar de lhes perguntar: “Mas como é que se apoia este tipo?” “É ele ou Hillary”, foi a resposta. “E Hillary é bem pior.” O argumento era realista, encerrando uma verdade filosófica e política: temos sempre de definir um Amigo e um Inimigo; e entre os inimigos, o inimigo principal. E nesse ano, e nessa eleição de 2016, Hillary Clinton era o inimigo principal. Hillary encarnava e simbolizava aquele arrivismo liberal chique, aquela esquerda dos interesses que empunha a bíblia globalista e internacionalista, o catecismo progressista e inquisitorial, contra os “deploráveis” que “ainda” insistem em guiar-se pelos “retrógrados” valores da religião, da nação, do enraizamento, da vida.

Era esse o tema, o catecismo, dominante; e Trump convertera-se na antítese. Donald Trump, o milionário e playboy do show business, pegava na agenda nacional conservadora e transformava-se no defensor da América profunda, da América do Aço e do Automóvel, da América de Norman Rockwell e dos Westerns de John Ford, da América de Eisenhower e de Reagan – e, sobretudo, da América real e presente, branca, mas também negra ou hispânica, rústica, mas também letrada; uma América farta de ser depauperada, manipulada, e silenciada e corrigida no pensamento e na expressão.

Esta América, metade da América, partilhava valores com a “outra Europa” que despontava e se levantava. Uma Europa que não queria ficar entre o neoliberalismo e a correcção política, que via com pena a desindustrialização, que estava farta do Centrão e da narrativa optimista dos Cândidos do século XXI.

Foi por aí que, apesar de tudo aquilo que na personalidade de Donald Trump me chocava e irritava, o passei a defender politicamente. Primeiro porque, com algumas respeitáveis excepções, o núcleo duro dos meus amigos e correligionários republicanos (que lá estavam, no meio de uma realidade que, apesar de tudo, nos será sempre estranha), assim o fizeram. Depois, porque a alternativa, não sendo diabólica, era bastante pior. E nessa condição, de defensor do detestado candidato republicano, estive em vários canais de televisão na noite da sua vitória, em Novembro de 2016. Tal como agora.

Trump venceu então e foi eleito presidente dos Estados Unidos, talvez o lugar mais importante deste mundo. E desde o primeiro dia que a coterie bem pensante, revoltada contra o que ele significava, tratou de o deslegitimar: a democracia, a maioria democrática era boa, era esclarecida, era soberana, não se enganava, por isso, se escolhia alguém como Trump, era porque fora enganada; era porque houvera uma desvirtuação  da salubridade, da substância ou da forma, ou da substância e da forma, do processo democrático. E vieram as teses da Russian Connection, pôs-se o FBI a investigar tenebrosos agentes de Putin, que estariam infiltrados para influenciar e manipular os bons americanos e levá-los a eleger aquela marioneta da Santa Rússia. Uma das histórias, que citava um ex-spook inglês e que circulou muito pela imprensa responsável, era uma chantagem ao libertino Trump com filmagens num quarto de hotel em Moscovo, em cenas que surpreenderiam e envergonhariam Messalina, Calígula e até o próprio Marquês de Sade. Meses de investigação, milhões de dólares gastos, e nada.

E foi também desde o primeiro dia e ao longo de todo o mandato que os vencidos das eleições de 2016 alimentaram as mais fabulosas histórias sobre o novo Presidente, ele próprio já pródigo em histórias: histórias de mulheres e ditos sobre mulheres, histórias de dinheiros, de impostos ou da sua ausência, histórias de devassidão. Depois passaram a um impeachment, que sabiam de antemão que não passaria no Senado.

Este live show tomou conta do mainstream mediático norte-americano, até de jornais “de referência”, como o New York Times e o Washington Post. Daí passou, rapidamente, para a Europa, onde dizer mal de Trump se tornou uma espécie de tiro ao alvo fácil, um “desbloqueador de conversa” tanto para os profissionais do bem-pensante como para os amadores da trivialidade. O presidente americano passara a ser o “bei de Túnis” dos pequenos e médios intelectuais e jornalistas do Euromundo.

Mas como o esforço de deslegitimação via interferência externa acabou por não funcionar, passou-se para a ideia de que Trump era claramente incompetente para o cargo, por não ter cultura nem experiência política, por ser emocionalmente instável, mudando de colaboradores a toda a hora e twittando febrilmente sobre tudo e mais alguma coisa. Ou seja, da deslegitimação pela origem passou-se para a deslegitimação pelo exercício.

É mais que evidente que Trump sai radicalmente do estilo do político tradicional, da sua respeitabilidade, dos seus modos, dos seus discursos. Fala para toda a gente, usa superlativos, é impiedosamente irónico, não poupa os inimigos, não resiste a responder aos ataques e fá-lo normalmente em escalada. Foi, de resto, essa verbosidade excessiva – a seguir à pandemia – o principal obstáculo à sua reeleição tranquila. As suas permanentes declarações sobre a Covid-19, sobre a maior ou menor gravidade da epidemia, sobre a sua natureza e possíveis processos de terapia, tiveram efeitos muito negativos sobre a sua imagem e Administração, também porque permanentemente explorados por uma extensa e plural comunidade mediática, que ia dos panfletários esquerdistas a arautos da respeitável burguesia internacionalista, como o Economist ou o Finantial Times, incomodados com o nacionalismo e o proteccionismo de Trump.

E, no entanto, o Presidente cumpriu parte substancial das suas promessas e, em termos de resultados (pré-Covid) foi eficaz: a economia americana viu uma grande valorização nos valores da Bolsa e o desemprego atingiu mínimos históricos; muitos capitais regressaram aos Estados Unidos, atraídos pela nova fiscalização; no plano internacional, não houve guerras, assistiu-se a algum apaziguamento no Médio Oriente e Donald Trump fez frente às pretensões da China e renegociou tratados de comércio na área americana e asiática, acautelando os interesses dos Estados Unidos. Quanto à relação atlântica, explicou aos europeus que teriam que pensar a defesa própria e custeá-la, pelo menos naqueles mínimos impostos pela aliança NATO dos 2% do PNB.

Não fora a pandemia e teria sido reeleito triunfalmente. Mas a pandemia chegou, atingiu a América, e alguma leviandade do Presidente a falar do assunto (à semelhança da de muitos políticos europeus) foi usada para o atacar. E este clima de ataque mediático e de divórcio da realidade, ou de metade da realidade, reflectiu-se nos institutos de sondagens, com excepção do Rasmussen e do Trafalgar que, mais uma vez, como em 2016, foram os únicos a aproximar-se do real.

Por exemplo, na véspera da eleição, o prestigiado RealClear Politics, dava Biden à frente de Trump por 7, 2 pontos percentuais, em termos nacionais. A vantagem foi de menos de 3%. Também o mesmo instituto dava Biden a bater Trump no Wisconsin por 6,7% e no Michigan por 4,2%. E punha o vice-presidente de Obama à frente de Trump na Flórida e na Pensilvânia. É bom olhar para os resultados e pensar se estas conclusões têm que ver com incompetência, ou com uma agenda que quis intencionalmente introduzir um factor de pessimismo e derrotismo e no campo de Trump. Sem contar com a “vergonha” ou o “receio” de se dizerem partidários do “Grande Ogre” de alguns dos sondados.

Trump, entretanto, não cedeu e fez uma campanha com grande dinâmica, assegurando para os republicanos vitórias no Senado e a recuperação de lugares na Câmara dos Representantes.

Quanto ao processo eleitoral em alguns swing states, já se fala em eleições terceiro-mundistas, dada a quantidade de fraudes e confusões já detectadas. É possível que haja recontagens e até processos legais de contestação de resultados.

Mas a América está dividida e a culpa não é exclusivamente de Trump. Trump é uma reacção a um processo de mundialização da economia, de crise de valores da civilização e de domínio de um sistema, cujas vítimas – as classes trabalhadoras e médias do Euromundo e talvez mais uma maioria silenciosa do chamado Terceiro Mundo – estão, por uma vez, a resistir.

Tal como outros líderes e movimentos nas Américas e na Europa, Trump, o Grande Ogre, é uma antítese. As sínteses vêm depois.