A operação policial no Martim Moniz originou um popular concurso para apurar a maior indignação. Centenas, talvez milhares, de participantes esgrimiram-se nas televisões e nas redes sociais a fim de mostrar qual deles era o mais chocado com o episódio. Felizmente, julgo que não chegou a haver internamentos para tratamento de stress pós-traumático. Mas terá faltado pouco. Não tenho vagar e sobretudo paciência para ser exaustivo, pelo que me limitarei a alguns exemplos de virtude e sensibilidade, classificados de acordo com o grau de escândalo e horror manifestado por cada concorrente. Há um bónus para os concorrentes que, por força de as ditas terem ocorrido sob tutela de governos socialistas, nunca se pronunciaram sobre acções anteriores da polícia no Martim Moniz, noutras zonas de Lisboa e do país, em bairros de imigrantes e em bairros sem imigrantes e, claro, durante as saudosas e humanitárias rusgas alusivas à Covid. Vamos a isso.
O nível básico de choque & pavor é aquele que acusa as autoridades de responderem a “falsas percepções de insegurança”, assim definidas por quem não reside em lugares animados por tráfico de droga, punhaladas e delinquência em geral. Uma “jornalista” da RTP comentou: “A PSP, ou quem ditou a operação ‘especial’, não pára de rondar esta zona de Lisboa… onde não há sinais de aumento de criminalidade.” É uma perspectiva interessante, principalmente se considerarmos que 52 crimes graves praticados na pequenina zona em questão em menos de dois anos equivalem a uma superlativa paz. Prémio: menção honrosa da Associação dos Cegos e Amblíopes.
O nível seguinte é o que acusa o PSD de entrar no espaço “ideológico” do Chega, disputando as desconfianças face ao excesso de imigrantes. Um caso típico é o do chefe do partido Livre, que opinou: “O ‘não é não’ de Luís Montenegro para a extrema-direita é mais: ‘vão à frente que eu vou lá ter’”. Presume-se que o dr. Tavares, que pelos vistos acha o controlo de fronteiras uma iniquidade, não fecha a porta de casa à noite (ou de dia): se o território de um país não tem donos, seria absurdo subverter esses caridosos princípios apenas para protecção, necessariamente extremista e radical, da habitação própria. Prémio: um capacho de boas-vindas e uma lancheira do Sandokan.
O terceiro nível de revolta é o que, sem sequer fazer escala no Chega, lança directamente ao governo as tradicionais acusações de “racismo” e “xenofobia”. Um tal Carlos Paz, criatura que se afirma professor universitário embora escreva com maiúsculas, palavrões e dificuldade, proclamou: “Recuso-me a viver num Estado Policial [sic], dirigido por um Governo de racistas, xenófobos, retrógrados, completamente boçalizados. ISTO NÃO É TOLERÁVEL!” Pois não. Faz impressão que, em 2024, indivíduos legalmente adultos continuem a entoar a cantilena do “fascismo”. Faz impressão que, em 2024, indivíduos estatisticamente alfabetizados cometam redacções indignas da segunda classe. E faz impressão que, em 2024, o ensino superior se arraste por catacumbas tão inferiores. Prémio: um dístico para colar no carro que reze BOÇAIS VÃO PARA O C‰R@#§¶!!!
O quarto nível de repúdio é o que finge que os eventos do Martim Moniz rebentaram com o Estado de direito, a liberdade e o regime em cerca de vinte minutos. Catarina Martins, figura que dispensa apresentações e racionalidade, confessou: “Aterrei tarde. Acordei num pesadelo. Como era aquela frase sobre dormir em democracia? Pois.” Enquanto apreciadora de sistemas políticos em que, além de revistar cidadãos por suspeita de infracções, a polícia prende-os e mata-os pelo que pensam, dizem e são, o abalo da dra. Catarina não é muito credível. Não obstante, vale a intenção. Prémio: medalhas de mérito da República Bolivariana de Venezuela e da Autoridade Palestiniana.
E o vencedor é… O vencedor, ou a vencedora, atingiu o nível máximo de indignação e ainda conseguiu ultrapassá-lo um bocadinho. Trata-se de Mafalda Anjos, ex-directora da ex-“Visão”. A senhora dona Mafalda ignorou as falsas percepções, o Chega, o fascismo, o Estado de direito e pôs logo o dedo – e as mãos, os pés e o que calhou – na ferida: no Twitter, colocou a omnipresente fotografia dos transeuntes encostados à parede na rua contígua ao Martim Moniz ao lado de uma imagem de judeus detidos após o levantamento do gueto de Varsóvia. Ou seja, para a senhora dona Mafalda o que aconteceu em Lisboa é similar ao Holocausto, a PSP é equivalente às Waffen-SS e pedir a identificação a uns sujeitos avulsos é igual a enviá-los para Treblinka. Enfim, uma análise que faz inteiro sentido e tresanda sensatez. Prémios múltiplos: renovação do contrato para comentários televisivos, um suprimento de Xanax, uma “História Universal” para colorir e três “woks” anti-aderentes.
Todos os esforços acima são merecedores de aplausos e da convicção de que a esquerda desistiu de oferecer o esboço de uma visão das coisas, por absurda e caricatural que fosse. A esquerda actual está condicionada a berrar sentimentos e palavras, sem ligações entre si excepto o rancor. Se os sentimentos de plástico e as palavras de papelão sempre estiveram lá, vinham cobertos de um pastiche da verdade que, por estas e por aquelas, se esfarelou com o tempo e deixou a fraude exposta como um osso partido. Não admira que, fora dependentes e oportunistas, a esquerda não seduza ninguém: ninguém quer ver um osso partido, a não ser com a curiosidade mórbida com que se vêem os desastres. A esquerda é um desastre que interrompe, idealmente por instantes, a vida real.