Cristais, cartas, búzios, pêndulos e quejandos. São estas algumas das crenças do homem ateu e, em muitos casos, agnóstico, deste século. E não só. Muitos católicos praticantes recorrem a estas práticas ignorando que são incompatíveis com a sua fé ou simplesmente não fazendo caso disso. A generalização na Europa das denominadas práticas ocultas provenientes de países africanos e do Brasil – adivinhação, espiritismo, esoterismo e uma nova religiosidade ligada à Nova Era – terá tornado pertinente, do ponto de vista editorial, a tradução e a recente publicação pela primeira vez na Europa, designadamente em Espanha (Outubro de 2023), de um livro que foi escrito em 2006 no país berço do vudu (Benin, na Africa Ocidental). De Las Tinieblas  A La Luz (Das Trevas à Luz) tem como autor Jean Pliya (1931-2015) escritor e político. Licenciado em Geografia, foi reitor da Universidade Nacional de Benin, chefe de gabinete do ministro da educação e ministro da Informação e do turismo. Foi pai de família numerosa e responsável, durante vários anos, pelo “Movimento da Renovação Carismática Católica”. Benim é considerado o país do vudu e os sacerdotes católicos vêem-se muitas vezes confontados com católicos que mantêm contactos com adivinhos, práticas de bruxaria misturadas com outras actividades “new age” e ambientes pagãos esotéricos. Por isso, o autor dedica um capítulo a esclarecer o que são os “pecados de idolatria”, propõe inúmeras orações para os superar e aconselha a frequência dos sacramentos. O livro inclui ainda vários testemunhos de pessoas que mudaram de vida e abandonaram essas actividades.

Os falsos profetas

A procura destas rotinas está também a progredir na Europa com o aumento da descristianização e até já entraram ostensivamente no espaço público. Além da leitura dos horóscopos e das previsões do ano as televisões dão palco a cartomantes e quiromantes como se fossem actividades credíveis. Há uns meses, quem ligasse a tv num dos programas da manhã apanhava uma quiromante a dizer generalidades, lendo as linhas da mão de uma apresentadora grávida. E foi fazendo a sua autopromoção divulgando que tinha adivinhado a morte do namorado dessa apresentadora, há uns anos atrás (Em que moldes? Genéricos ou circunstanciados?) e citando impunemente o nome de um conhecido médico como sendo seu cliente, o que constitui o crime de devassa da vida privada.

O espírito crítico e a responsabilidade social estão muito ausentes na difusão pública destas actividades. No fim do ano de 2019 foram divulgadas as previsões de uma conhecida taróloga para o ano a seguir mas não foi verificado nem divulgado o acerto das mesmas. O ano 2020 foi previsto por essa taróloga como muito positivo para Portugal quando foi, afinal, um ano péssimo com inúmeras mortes e o recolher obrigatório provocado pela pandemia da covid, com graves consequências também no tecido económico. No Brasil uma conhecida cartomante que exerce actividade nas redes sociais previu que em 2023 a Igreja Católica iria ter outro Papa, o que também não aconteceu. A nível pessoal recordo uma amiga que há uns anos recebeu como prenda de aniversário um voucher para consultar uma cartomante. Ela estava ansiosa por ser avó, mas a profissional respondeu-lhe que não via nada nas cartas. Nesse mesmo ano as duas filhas engravidaram quase ao mesmo tempo e já tem 4 netos.

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Uma situação mais recente revelou-me uma realidade que desconhecia. Foi numa conversa casual, com uma senhora licenciada e que tem uma intensa actividade intelectual diária. Ela disse-me que já lhe tinham feito o diagnóstico de Alzheimer e que lho tinham revertido, ambas as situações através do pêndulo de cristal. Perante a minha ignorância, especificou que tinha recorrido à radistesia espiritual. O dicionário define a radistesia como a  “sensibilidade a qualquer espécie de radiações; forma de adivinhação por meio de movimento (a que seriam sensíveis certos indivíduos) de varas ou de esferas pendentes, que revelariam, à distância, a presença de fontes, de jazidas de minérios, de cadáveres, de doenças, de objectos perdidos (“Dicionários Porto Editora”). Uma busca mais atenta classifica esta actividade como pseudociência.

Há uns anos estive integrada numa equipa que preparava a abertura de um canal temático na TV cabo. Um dos responsáveis editoriais do canal revelou a intenção de criar um programa com uma adivinhadora de quem tinha muito boas referências. A adivinhadora foi conduzida ao estúdio e o ensaio foi feito com as pessoas da equipa que decidiram consultá-la. Entre outras afirmações ela afirmou que o canal ia ser um sucesso. Infelizmente para nós que já lá estávamos a trabalhar, as previsões não se concretizaram e o projecto não sobreviveu. Abortou poucos dias depois e nunca foi para o ar. Lembro-me de me terem perguntado por que é que eu não fui falar com ela, se não tinha curiosidade em consultá-la ao que respondi, então como hoje, que não acreditava nos poderes especiais ou dons de adivinhação alegados por determinadas pessoas e que além disso era católica praticante sendo essa actividade incompatível com a minha fé.

A posição da Igreja Católica

O Papa Francisco tem exortado os católicos, em várias ocasiões, para não frequentarem estes costumes que são incompatíveis com a religião.” Quem escolhe Cristo não recorre a magia, tarô ou cartomantes. Essas coisas que são feitas para adivinhar o futuro (…) não são cristãs”, alertou o papa Francisco na Catequese de 4 Dezembro 2019. “Se você escolhe Cristo não pode recorrer ao mago: a fé é abandono confiante nas mãos de um Deus confiável que se mostra não através de práticas ocultas, mas pela revelação e com amor gratuito. (…) Talvez alguns de vocês possam dizer: Ah, sim, essa história de magia é antiga. Hoje isso não acontece. Fiquem atentos! Eu pergunto: quantos de vós vão atrás de tarô, quantos de vós procuram as pessoas que lêem as mãos e as cartomantes? Ainda hoje, nas grandes cidades, os cristãos praticantes procuram essas coisas”, alertou o Santo Padre.

Um raciocínio mais crítico poderá dizer que à Igreja Católica como instituição não agradam, obviamente, potenciais concorrentes que lhe retirem o protagonismo. Mas tanto as exortações do Papa como os ensinamentos do  Catecismo (pontos 2111 a 2117) reflectem o conteúdo dos escritos muito, muito antigos, contidos na Bíblia, sobre estas questões: “Não procurareis os que consultam os mortos, nem os feiticeiros. Não os consulteis para não serdes contaminados por eles. Eu sou o Senhor vosso Deus“, Livro do Levítico 19:31. E “Quando tiveres entrado na terra que o Senhor, teu Deus, te dá, não te porás a imitar as práticas abomináveis da gente daquela terra. Não se ache no meio de ti (…) quem se dê à adivinhação, à astrologia, ao feiticismo, à magia, ao espiritismo, à adivinhação ou à invocação dos mortos, porque o Senhor teu Deus abomina aqueles que se dão a essas práticas. Serás inteiramente do Senhor teu Deus”, Livro do Deuteróimo 18, 9-13

A Igreja ensina ainda que praticar magia e ocultismo é correr o risco de abrir a porta para as forças demoníacas, quer se esteja ciente disso ou não. Francisco é o Papa que mais tem falado sobre a existência do mal, personificado no diabo: “Com o diabo não se dialoga. Nunca! Não se deve discutir, nunca. Jesus nunca dialogou com o diabo. Expulsou-o. E no deserto com as tentações não respondeu com diálogo, simplesmente respondeu com as palavras da Sagrada Escritura. Com a palavra de Deus” (Catequese Dezembro 2023).

“O diabo existe também no século XXI. Devemos aprender com o Evangelho como lutar contra ele”: é esta a inscrição na capa do livro da autoria do Papa, publicado em 2019. Francisco faz questão em explicar que não se trata de uma abstracção simbólica, fruto de fantasias, mas de uma força negativa e incontrolável capaz de destruir a humanidade, na corda bamba entre o bem e o mal. Praticar magia e ocultismo é correr o risco de abrir a porta para as forças demoníacas, quer se esteja ciente disso ou não.

Características da oferta e da procura

O conhecimento empírico mostra-nos que a consulta destas práticas é transversal a todas as classes sociais e formação intelectual. Predomina, no entanto, nos níveis de escolaridade mais baixos. Em relação aos profissionais deste sector o mesmo conhecimento empírico revela que a maioria são mulheres de classe baixa, dos 35 aos 70 anos, casadas com operários ou reformados que dizem ter o dom e mudam de actividade para o exercer.

A publicidade aguerrida nos jornais e outros meios de comunicação social assim como os panfletos oferecidos na rua ou colocados nos vidros dos automóveis dão a entender que são actividades com procura. Mas não há dados estatísticos sobre o número de pessoas registadas com esta actividade nem sobre a progressão da mesma.

O INE (Instituto Nacional de Estatística) informa que não pode disponibilizar essas estatísticas pois não é possível desagregar as várias situações incluídas na CPP/2010 – Classificação Portuguesa de Profissões” pois agrupa cenários muito diversos:

Outros Trabalhadores dos Serviços Pessoais — Compreende as tarefas e funções dos astrólogos, adivinhadores e similares, pessoal de companhia, ajudantes de quarto, agentes funerários, embalsamadores, prestadores de cuidados a animais, instrutor de condução e outros trabalhadores dos serviços pessoais, com especial incidência na previsão de acontecimentos futuros, fornecimento de serviços de acompanhamento pessoal, treino e cuidados de animais, serviços funerários e de embalsamento de animais e instrução na condução de veículos.

Este artigo desdobra-se em subgrupos mais específicos, por exemplo:

Astrólogos, Adivinhadores e Similares — Compreende as profissões de astrólogo, adivinhador e similares, com especial incidência na previsão de acontecimentos futuros para a vida das pessoas.

Mas nos Censos os dados disponíveis abarcam apenas os três dígitos, conforme resposta do INE.

O CAE – “Classificação Portuguesa de Actividades Económicas” é muito semelhante à classificação das profissões:

Outras Actividades de Serviços Pessoais Diversas, N.E. — Compreende as actividades de serviços de predominância pessoal não incluídas em outras subclasses, nomeadamente, actividades de astrólogos, espiritistas, cartomantes, engraxadores, arrumadores de viaturas, bagageiros, acompanhantes, agências de marcação de encontros matrimoniais e de pesquisa genealógica. Inclui máquinas de serviços pessoais accionadas com moedas (fotográficas, balanças, pressão arterial, etc.).

Estes profissionais do oculto afirmam-se dotados de poderes especiais e prometem dar a quem os procura a segurança e a clarividência que estes pretendem obter: desdobram-se em conselhos assertivos para todas as dúvidas, fornecem soluções para todos os desgostos e dão directrizes para construir um futuro bem sucedido. Por vezes, até vendem soluções na forma de remédios caseiros que dizem ser infalíveis para a pessoa se libertar de maus-olhados e amarrações, ou para atingir outras pessoas que o cliente nomeie. Tudo isto com a autoconfiança de quem tem sempre uma resposta bem acolhida para o que não resultar pois no cliente o emotivo predomina sobre a razão e este manifesta uma nostalgia do religioso e uma ânsia do transcendente.

Religião e auto religião ou espiritualidades: as diferenças

George Steiner (1929-2020) foi um dos grandes intelectuais contemporâneos que dedicou uma parte da sua obra a estudar e a escrever sobre a crise da cultura ocidental nos últimos 150 anos. Declarou-se ateu, mas não deixou de inquietar-se com a extensão da credulidade na sociedade contemporânea:

O nosso ambiente psicológico e social é o mais afectado pela superstição e o irracionalismo de todo o tipo, desde o declinar da Idade Média e mesmo desde a crise do mundo helenístico. Astrologia, videntes de todo o tipo, percepção extra-sensorial, lixo satânico, expande-se em livros e revistas, gurus, meditação zen…. O regresso do irracional é uma tentativa de preencher o vazio deixado pela (falta) de religião”.(“Nostalgia do Absoluto” 1974)

Outras explicações para a causa e a proliferação destes fenómenos são dadas na obra do padre Jean-Christophe Thibaut (1960). Nascido e educado num ambiente familiar ateu praticou desde muito novo – dos 8 anos até aos 22- espiritismo, magia negra e pêndulo. Ordenou-se padre (em 1992) após uma conversão fulminante (fez a primeira comunhão aos 24 anos e a confirmação aos 28) mas só em 2021 escreveu um livro sobre este período da sua vida intitulado “ A prisão dos espíritos”.

Numa entrevista recente (Aleteia 2022) Thibaut associa a procura do esotérico ao fenómeno da auto-religião, que começou a despontar nos anos 60. Um fenómeno onde cada pessoa constrói a sua própria religião que “…assume a forma de novas espiritualidades que irrigam uma série de práticas de desenvolvimento pessoal, medicamentos alternativos ou causas ideológicas apocalípticas, até mesmo ocultismo e bruxaria.” E acrescenta: “É preciso notar que muitos de nossos contemporâneos fazem a diferença entre religião e espiritualidade. A religião é percebida como um confinamento em dogmas e rituais a serem cumpridos, onde deve seguir -se uma verdade imposta. A espiritualidade, por outro lado, é vista como um espaço de liberdade onde pode buscar-se Deus, a divindade, o absoluto, como se deseja e da maneira que se gosta”. Conclui, no entanto, que estes caminhos “São caminhos materialistas e utilitários, onde não há amor, onde o homem não se volta para o Outro, para o transcendente, mas para si mesmo”.

De facto o amor é o primeiro mandamento da lei de Deus e a caridade a virtude que distingue os cristãos desde sempre. Os cristãos falham, mas procuram ou devem procurar viver uma vida de entrega aos outros em detrimento do isolamento do EU em práticas divinatórias.

Esta pode ser a pedra de toque para destrinçar, numa primeira abordagem, muito superficial, a religião de uma amálgama de espiritualidades heterogéneas que proliferam na sociedade contemporânea.