Falamos dele como se fosse fugaz. Perigoso. Furtivo, até. Ou escorregadio. Como se devesse viver entrincheirado numa enorme contenção. Talvez porque se imagine que o desejo seja movido pelo impulso. Ou seja qualquer coisa de sedento que se esgueira de nós e embaraça. Ou vivesse pautado por um ímpeto saltitante de animal. Em vez de se ancorar numa construção que liga, como poucas coisas mais, afecto e raciocínio. Onde se funde a capacidade de estar só. A fantasia. O sonho e o silêncio. A paixão. A garra. A competência para discorrer e para pensar. A memória. A fé, o amor e o futuro.

A maneira como se fala do desejo parece tão presa a uma atmosfera judaico-cristã que ele se manifesta, sobretudo, não se manifestando. Como se no desejo houvesse um convite à contenção. Ou se fosse mais próximo da luxúria do que da humildade e da perseverança humanas. Ou, ainda, como se o desejo fosse um trampolim para o pecado em vez da forma mais leal que existe de trazer a vida à verdade e nos libertarmos dele.

O desejo não é a cabeça de um fósforo que, da mesma forma como se incendeia, esmorece e capitula, de seguida. Desejo e imediatismo são o contrário um do outro. O desejo é um horizonte no mais além. O imediatismo um ímpeto, um devaneio ou um impulso. Ao contrário do preconceito com que o confundimos com o imediatismo, o desejo é o porto de abrigo que, de depois de muito se pensar, nos leva da arquitetura à engenharia duma escolha. E nos faz ir, vida adentro, construindo-a, devagar. Talvez porque o desejo seja – sempre! – a ponte que liga a memória o e futuro.

Sente-se que a forma como se censura o desejo resulta da ideia de que o prazer que dele resulte nos descentra da seriedade humana. O que é um absurdo! O prazer é sempre uma experiência de encontro e de comunhão entre o dentro mais dentro que temos com o apanhar o jeito com que isso ganha forma e luz e vida e simplicidade em nós. Porque é que o princípio da realidade não se pode casar com o princípio de prazer? Será que a realidade sai a perder por caberem nela os nossos desejos? Porque é que insight e prazer não podem ser, um com o outro, o ar que respiramos? Seja através do modo como vamos à procura de nos encontrarmos; seja encontrando-nos na forma como a diversidade dos outros nos leva ao encontro de nós sem nos procurarmos?

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Desejar é escolher! Ao contrário da visão orgástica que, como uma bruma que o torna opaco, foi caindo sobre ele. Como se o desejo nos escolhesse, de assalto, e, como quem tropeça numa fatalidade, caíssemos por ele. Mas crescer sem desejo e sem futuro não é crescer. É ser errante. Sem a lonjura que nos leva até à luz.

É por isto mesmo que, em muitos momentos, me sinto desconcertado diante de alguns pais que me confidenciam que os seus filhos não sabem esperar. É verdade que sermos amados vem equipado com um certo quanto-baste de egocentrismo. E é por isso que, idealmente, do desejar ao conquistar os nossos filhos imaginem que se passe um tarda nada. Quando eles reclamam a urgência de um desejo, fazem-no movidos pela convicção que os pais devam interromper a sua vida para que se dêem à deles. E lhe confiram o protagonismo daquilo que os leve do desejo ao prazer. Muito depressa! Entende-se que, do ponto de vista dos filhos tudo se passe mais ou menos assim. O que talvez se entenda pior é a forma como os pais parecem cultivar uma culpabilidade persistente sempre que não o satisfazem logo, logo os desejos dos seus filhos. Como se só o mais imediato os fizesse mais felizes. Ou, de entre todos os “desejos”, mal pudessem esperar para eleger só um. A dificuldade com eles passaram a esperar não é estranha ao modo como nós entendemos satisfazer os seus desejos quase no imediato. Como se os desejos fossem descartáveis. Quando não são!

É normal que um filho alimente a ilusão de que, só porque as deseja, as coisas aconteçam. “Se as pessoas que gostam de mim gostarem da forma como dão a entender que gostam nunca me irão frustar as minhas expectativas. Nem por um bocadinho”. É mais assim que eles imaginam a nossa relação com os seus desejos. Ou, doutro modo, assim: “Se os meus pais fossem como deve ser, resolviam-me todos os problemas. Aliás, resolviam-mos ainda antes de eu ter percebido que eles são um problema. Ou, melhor: “antes, ainda, de eu ter o desejo descobrir no desejo a vontade de resolver os meus problemas.” É verdade que pode parecer sem jeito ligar problemas e desejos. Mas crescer é isso mesmo: encontrar nos desejos os argumentos com que se resolvem os problemas. Ao contrário da forma como nos educaram para o desejo. Que fez com que primeiro estivessem as obrigações e só depois o prazer. Como se o desejo não fosse uma “obrigação”. E não fosse pela forma como elegemos um desejo e peregrinamos por ele que encontrássemos a astúcia, o arrojo e o brio que nos capacitam para que os problemas se resolvam.

Só temos medo do desejo porque tomamos o prazer como um droga que nos tolhe. Só vivemos submissos diante dos problemas porque o desejo é “interdito”. Talvez seja por isso que pareçamos desejar sempre tão pouco.

Aliás, os nossos filhos só são imediatistas porque o desejo vive paredes-meias com a culpa. Porque não os ensinamos a perscrutar os seus desejos. E a pôr garra, perseverança e humildade neles. Só nos tornamos imediatistas quando temos alguém a acudir aos nossos problemas antes de perscrutarmos neles os argumentos com que construímos os desejos. Mas só crescemos quando identificamos os nosso desejos e lutamos por eles.

Para crescer todos precisamos de aprender a esperar para que se aprenda a desejar. Quanto mais imediatistas eles se tornam mais vivemos em espera! E mais impulsivos nos tornamos. Porque entendemos que esperar é uma frustração insuportável quando se garimpa um desejo. Quanto menos se aprende a esperar mais nos desencontramos do prazer.

Somos feitos de problemas. Todos temos problemas! A diferença está em sentirmo-nos capazes de os reconhecer. De os formular. De ponderar e de esperar para descobrir como os resolver. Ou de querermos passar por eles como se os problemas se resolvessem unicamente porque não olhamos para eles.

E somos feitos de desejos. Todos temos desejos! A diferença está em sermos capazes de os construirmos. Ou querermos passar por eles como se não fossem os desejos que abrem os trilhos que criam os caminhos que fazem as rotas com que elegem os destinos por onde passamos quando resolvemos os problemas.

Porque é que lhes alimentamos a ilusão de que a vida é fácil quando resolver problemas exige afecto e raciocínio; capacidade de estar só; sonho e fantasia; paixão e garra; competência para discorrer e para pensar; memória e fé e amor pelo o futuro? Porque é que lhes alimentamos a ilusão de que quanto mais depressa eles crescem mais felizes serão, se aquilo que se passa é exatamente o contrário? Pode-se crescer com sabedoria e rapidamente, ao mesmo tempo? Pode ser-se feliz sem enfrentar os problemas e desbastar por entre aquilo que se vive o que, depois de esmiuçado, nos leve ao desejo?

Falamos dele como se fosse fugaz. Perigoso. Furtivo. Ou escorregadio. Como se devesse ter “rédea curta”. E viver sempre na bruma. Mas o desejo é o sal da vida. O promontório de onde o horizonte que ele nos traz faz de cada problema um mais aquém.